História da Sexualidade: das Reproduções Bacterianas à Ideologia de Gênero

I/III - A Construção Morfológica do Sexo:
O fenômeno do dimorfismo sexual, enquanto subproduto da tangente reprodutiva, não é inovação da espécie sapiens. Na verdade, Amabis e Martho dizem em Biologia das Células, que essa (a reprodução, juntamente com o metabolismo) é justamente uma das duas condições necessárias para a existência de seres vivos.

Portanto, este artigo começará sua exposição analisando de forma muito resumida o fenômeno anatômico, hormonal, cerebral, reprodutivo, instintivo e etológico de diferentes outras espécies tentando encontrar paralelos e concorrentes (semelhanças e diferenças) com a nossa, além trilhar o rastro biológico que a evolução da reprodução e da sexualidade deixaram na História Cladística.

De forma muito resumida, quase todos os seres vivos conhecidos são assexuados (seres que se reproduzem através de duplicação cromossômica, como as bactérias – através da chamada autofecundação). Em relação aos indivíduos sexuados (seres vivos que surgem a partir de uma única célula [zigoto – originado pela união de duas células sexuais distintas, os gametas], através da chamada fecundação cruzada), a esmagadora maioria deles é hermafrodita. Alice Dreger mostra em Progress and Politics in the Intersex que o termo hermafrodito pode se referir ao “filho de Hermes e Afrodite” e, também, ao “ser que possui órgãos reprodutores dos dois sexos”. Ao apresentar o termo “andrógino” como seu sinônimo, ensina que são andróginos os “vegetais que têm simultaneamente flores masculinas e femininas, agrupadas no mesmo pedúnculo ou na mesma espiga”. Contudo, ressalta que “as flores dotadas de órgãos dos dois sexos não são chamadas andróginas, e sim hermafroditas”. Ou seja, em resumo, o vegetal é andrógino e sua flor é hermafrodita. Assim, em um primeiro momento, hermafroditismo é a condição dos indivíduos sexuados que não possuem sexos separados, concentram os gametas em si mesmos. A exemplo dos fungos, algumas plantas, esponjas, etc.

A existência de sexo separado (dioico) é uma novidade biológica recente, desenvolvida a partir de uma troca heterogamética entre indivíduos. Não se sabe exatamente porque a unidade de alguns indivíduos sexuados hermafroditas foi rompida, dando origem à fusão sine qua non de certos cromossomos específicos, naquilo que conhecemos por fecundação. Algumas hipóteses sugerem que a separação tornou a produção mais especializada e, portanto, torna a reprodução sexuada mais eficiente e os indivíduos mais adaptados ao meio, provocando uma seleção natural. Outras que a separação demandava menos energia dos indivíduos, sendo econômica do ponto de vista biológico. Outras que a variabilidade genética conquistada pelo dimorfismo foi um grande conquisto no sentido de tornar alguns indivíduos especiais imunes à doenças, naturalmente adaptados ao ambiente, resistentes à predadores ou patógenos, etc. diferente do que ocorreria em caso de grande similaridade genética que tende a promover erradicação massiva da população nesses casos. E ainda outras que sugerem que em determinado momento, os arranjos genéticos tornaram-se limitados ou incompatíveis, sendo necessária a separação.

Fato é que a separação a priori trás uma desvantagem ecossistêmica notória: em caso de, por algum motivo, os indivíduos que contêm um único grupo de cromossomos sejam isolados de seus pares sexuais, a população biológica não irá se reproduzir e, como consequência, desaparecerá no espaço de uma geração. Contudo, esse provavelmente não foi um problema com o qual a natureza teve que lidar nos primórdios da separação gamética, uma vez que os indivíduos biológicos tinham a capacidade de "trocar de sexo", característica que muitos mantêm ainda hoje. Esponjas (uma das espécies vivas mais primitivas que existem), sanguessugas, alguns moluscos, vários poliquetas e também vertebrados como algumas espécies de peixes (como os recifes de coral, a exemplo do peixe-palhaço), anfíbios, aves, cobras, lagartos e até mamíferos como golfinhos ou algumas espécies de tubarões - produzem gameta masculino em determinado período e gameta feminino em outro período. Ou, começam a vida produzindo um gameta e terminam a vida produzindo outro gameta (o que é o mais comum), e alguns (como algumas outras espécies de peixes como Clownfish, bodiões, moréias ou gobies) conseguem mudar de "sexo" de acordo com fatores ambientais (esse processo é chamado de parterogênese ou hermafroditismo sequencial observado).

Uma escala dos peixes clownfish é construída sempre em uma hierarquia com um peixe fêmea na parte superior. Quando ele morre, o macho mais dominante muda de sexo e toma seu lugar. Nas relações (na família Labridae) a mudança de sexo é de fêmea para macho, com a fêmea a maior do harém que muda em um macho e que toma sobre o harém em cima do desaparecimento do macho dominante precedente.

A mudança natural do sexo, em ambos os sentidos, também foi relatada em corais de cogumelos. Isto é posicionado para ocorrer em resposta a constrangimentos ambientais ou energéticos, e para melhorar a aptidão evolutiva do organismo; Fenômenos semelhantes são observados em algumas plantas dioicas. Essa mudança ainda pode ocorrer por estarem em um ambiente com desequilíbrio sexual, (ex: muitos "machos", aí um "vira" "fêmea", ou o contrário). E, aqui, deve-se atentar para o fato de que tanto a configuração reprodutiva genética como o comportamento dos indivíduos são modificados.

Dentro das espécies dioicas, o surgimento dos amniotas (vertebrados cujo embrião é envolvido pelo âmnio [ovo ou placenta], como os répteis, aves e mamíferos) foi, basicamente, o último empecilho a ser superado para 100% da sobrevivência dos indivíduos em terra firme. Já que o óvulo precisa de líquido pra sobreviver, e esse desenvolvimento não poderia acontecer em terra firme e seca. Posteriormente, o surgimento de uma genitália externa facilitou o desenvolvimento porque o gameta precisa sair de um indivíduo de um sexo e entrar no corpo de outro indivíduo de outro sexo (geralmente a fêmea, mas acontece com machos também, ex: cavalos marinhos), esses indivíduos responsáveis por receber e unir os gametas são chamados de placentários. Embora a genitália externa tenha sido uma ótima "solução" para o problema da sexualidade nos seres terrestres, ela também impôs um limite. Que foi o de que a reversão hermafrodítica dos sexos se tornou inviável, afinal, a possibilidade de o órgão reprodutor externo "mudar" durante a vida ou conforme a necessidade ambiental é muito remota.

No entanto, apesar de a possibilidade parterogênese reprodutora (física), ou seja, a mudança de sexo externo se tornar muito remota, a mudança cerebral , a forma como o próprio indivíduo se vê e se percebe (que chamamos de identidade de gênero) e a mudança na atração que o indivíduo sente por outros indivíduos (que chamamos de orientação sexual) não é irreversível, ela pode acontecer. E isso é observado em praticamente todas as espécies de amniotas, desde tartarugas gigantes, calangos, pinguins, orcas, girafas, elefantes, etc. O que demonstra que os dioicos ainda continuam sendo programados para mudar de sexo em caso de necessidade, só que os amniótas perderam a capacidade de fazer isso externamente, embora não tenham perdido a capacidade de fazer isso neurologicamente.

O que vai determinar a formação da genitália externa, da identidade de gênero e orientação sexual merece uma segunda etapa dessa explicação.

Primeiro com relação à formação da genitália nos indivíduos amniótas.
Geralmente, as espécies que são dioicas possuem alguma diferença genética entre machos e fêmeas. Em insetos himenópteros (abelhas, formigas, vespas, etc) não há um cromossomo sexual específico. Neles, o macho tem metade do material genético da fêmea. Em outros casos, os cromossomos sexuais existem, mas são todos iguais o que varia o sexo é a quantidade de cromossomos sexuais (ex: se o indivíduo tem 3 cromossomos sexuais, ele é macho. Se tiver quatro, ele é fêmea). Em relação aos vertebrados, há dois cromossomos e um deles é sempre fixo (ou seja, um deles sempre vai estar presente tanto no macho, quanto na fêmea), se esse cromossomo aparece duplicado, aí é um sexo. Se aparece com outro tipo de cromossomo, aí é outro sexo. No caso dos seres humanos (e de todos os mamíferos, acho) o sexo feminino é o duplicado. Ou seja, o masculino é XY e o feminino tem dois cromossomos iguais, XX. Em aves, é o contrário, o masculino é quem possui os dois cromossomos iguais (ZZ) e o feminino possui os cromossomos distintos (ZW). Em 2013, uma pesquisadora - Monika Ward - da Universidade do Havaí, Honolulu, já havia começado a demonstrar em estudo publicado na Science que o cromossomo y não é, de fato, relevante para o desenvolvimento de machos uma vez que conseguiu condensar todos os genes do cromossomo Y dos camundongos machos em apenas dois genes - Sry e Eif2s3y. Em 2016, Monika Ward finalmente conseguiu eliminar a necessidade dos dois genes - Sry (que determina o desenvolvimento dos testículos no embrião) e Eif2s3y (que faz com que as células precursoras dos espermatozoides proliferem), criando ratazanas machos sem qualquer traço do cromossomo Y, apenas com X.

O que o Sry normalmente faz é ativar outro membro da sua família (o Sox9) que vive no cromossomo 11, e é este que depois se encarrega de todo o resto (fazer os testículos). Ward e seus colegas manipularam o gene Sox9 para que se ative sozinho, sem a necessidade de receber ordens do Sry, assim, Sry deixou de ser necessário. Em Eif2s3y, o gene que Ward escolheu para substituí-lo está localizado no próprio cromossomo X, tratando-se, portanto, de uma questão de dose. Basta aumentar a atividade do gene similar do cromossomo X para que se dispare a proliferação dos precursores dos espermatozoides.

Segundo Monika Ward, sua pesquisa é importantíssima porque, no futuro, possibilitará que homens que são estéreis por complicações no cromossomo Y possam ter filhos.
Outro fator de notória importância no dimorfismo sexual do embrião são as epimarcas. Epimarcas são alterações na cromatina que exercem influência sobre a transcrição genética sem incluir mudança na estrutura do DNA. Como as epi-marks são introduzidas hereditariamente, alterações epigenéticas relacionadas ao ambiente são potencialmente capazes de feminilizar cérebros e comportamentos, como já demonstrado com camundongos. Essas epi-marks podem ser transmitidas através das gerações.

As epi-marks constituem, portanto, um conjunto de mecanismos que, entre outros, possibilitam que a conexão estabelecida entre a testosterona e o receptor androgênico seja ampliada ou diminuída, potencializando sua ação ou retraindo, além de que epi-marks específicas em ambos os sexos contribuem para a diferença da sensibilidade androgênica. Por exemplo, em 2011, Bale demonstrou que o cariótipo XY conduz à modificações que potencializam o sinal de transdução da ação testosterônica para o receptor androgênico, através de determinados estímulos e no cariótipo XX ocorre o inverso, ou seja, há um bloqueio dessa ação.

As epimarcas que potencializam o sinal em XY protegem contra os antagonistas androgênicos e contra as flutuações da testosterona e, em XX, ao invés de haver um bloqueio, protegem o feto dos agonistas androgênicos. Isso explica porque em dado momento a concentração de testosterona em feto XY é encontrada mais ou menos diluída do que no feto XX, o que tende a impedir que tal concentração impeça a feminilização dos órgãos sexuais e mantendo um certo padrão morfológico e anatômico do feminino e masculino.

Essas epimarcas (ambas) podem ser produzidas em qualquer tempo antes da instalação do mecanismo de sinal (quando os testículos começam a secretar a testosterona e, portanto, a implantação anatômica dos órgãos sexuais e demais traços morfológicos). Em 2007, Mikkelsen mostrou que essas epi-marks têm o potencial de serem herdadas de uma geração para outra.

As epi-marks recebidas pelo espermatozoide e pelo óvulo são apagadas com certa agilidade após a gastrulação. Hemberger demonstrou em artigo publicado na Nature que o embrião, logo em seguida, faz uma genome wide (releitura do genoma) com uma síntese de epi-marks novas.

Os embriões XX e XY são epigeneticamente programados desde a fase do blastócito (em que o embrião praticamente sequer foi instalado na parede uterina). E as epimarcas que eles produzem neste momento são candidatas para serem agentes causativos do dimorfismo sexual em resposta aos andrôgenos circulantes. Em 2008, Whitehaw mostrou que as epimarcas são sexualmente dimórficas e a herança genética influencia o desenvolvimento sexual do sexo oposto.

Ou seja, há um conflito de epimarcas herdadas dos progenitores resultando, por vezes, em um antagonismo de epimarcas que redireciona o desenvolvimento gonadal para uma direção discordante, que é a chamada (SA-epi-marks → sexual antagonic epi-marks).
"Quando a genética é levada em consideração, a fronteira entre os sexos torna-se ainda mais desfocada. (...) Além disso, as novas tecnologias em sequenciamento de DNA e biologia celular estão revelando que quase todos são, em graus variados, um patchwork de células geneticamente distintas, algumas com um sexo que pode não coincidir com o resto do corpo. Alguns estudos sugerem que o sexo de cada célula desencadeia seu comportamento, através de uma complicada rede de interações moleculares. Há uma diversidade muito maior dentro de homens e mulheres, e certamente há uma área de sobreposição onde algumas pessoas não podem se facilmente definir dentro da estrutura binária". - Claire Ainsworth (Nature)

A conclusão de que cada célula tem um "sexo" foi inevitável a partir do mosaicismo genético. Ou seja, as células do organismo não possuem o mesmo set completo de genes e o indivíduo desenvolve-se a partir de um único óvulo fertilizado, mas se torna uma colcha de retalhos de diferentes arranjos genéticos. De modo que um embrião que começa como XY pode perder Y em um grupo de células, sendo que será o conjunto majoritário ou de grupos mais relevantes do organismo de XX e XY que determinará o sexo do organismo e não a totalidade gênica. Se a maioria das células acabar como XY, por exemplo, o resultado é um macho fisicamente típico, mas se a maioria das células são X, o resultado é uma fêmea com uma condição chamada síndrome de Turner.

A descoberta do mosaicismo permitiu constatar a existência de gêmeos monozigóticos de sexos diferentes. Ou seja, indivíduos que iniciaram o desenvolvimento embrionário com uma carga biológica similar, mas que os diferentes arranjos no desenvolvimento paralelo conduziram um a um sexo e outro, a outro. Uma mulher grávida de 46 anos visitou sua clínica no Royal Melbourne Hospital, na Austrália, para ouvir os resultados de um teste de amniocentese para examinar os cromossomos do bebê em busca de anormalidades. O bebê estava bem - mas testes de acompanhamento revelaram algo surpreendente sobre a mãe. Seu corpo foi construído de células de dois indivíduos, provavelmente de embriões gêmeos que se fundiram no útero de sua própria mãe. E havia mais: um conjunto de células carregou dois cromossomos X, o complemento que tipicamente faz uma pessoa feminina; o outro teve um X e um Y. No meio da sua quinta década e grávida de seu terceiro filho, a mulher aprendeu pela primeira vez que uma grande parte de seu corpo era cromossômico masculino.

Em 1999, foi descoberto o microquimerismo, ou seja, que o feto troca células com a mãe e a mãe, com o feto. Atenção especial para a metástase de células tronco de ambos, essas células permearão o organismo de ambos nos mais variados órgãos e tecidos.

Em 2012, o imunologista Lee Nelson e sua equipe na Universidade de Washington em Seattle encontraram células XY em amostras pós-morte de cérebros femininos.

A Literatura médica trás o caso em que foi observada a presença de células cerebrais masculinas em uma mulher de 94 anos.
"Essas descobertas não caem bem em um mundo em que o sexo ainda é definido em termos binários. Poucos sistemas legais permitem qualquer ambiguidade no sexo biológico, e os direitos legais e o status social de uma pessoa podem ser fortemente influenciados pelo fato de seu certificado de nascimento indicar sexo masculino ou feminino.  'O principal problema com uma forte dicotomia é que há casos intermediários que empurram os limites e nos pedem para descobrir exatamente onde está a linha divisória entre homens e mulheres e esse é, muitas vezes, um problema muito difícil porque o sexo pode ser definido de várias maneiras.' (...)" - Arthur Arnold, professor-pesquisador do dimorfismo sexual na Universidade da Califórnia, Los Angeles.

O desenvolvimento da genitália externa e a formação das gônadas (e outras cositas más) no desenvolvimento do embrião vai ser determinado por essa especificação cromossômica-hormonal, de acordo com a informação genética. Eles vão determinar a produção de testosterona embrionária, estrógeno embrionário, etc. Que os dois sexos são fisicamente diferentes é óbvio, mas no início da vida, não é. Cinco semanas após o desenvolvimento, um embrião humano, tem o potencial de formar anatomia masculina e feminina, possuindo uma estrutura chamada de gônada bissexual interna. A partir da sexta semana, se o embrião tiver um cromossomo diferente ou não, será mandada uma mensagem química pra essa gônada estimulando o aumento ou diminuição na produção de testosterona, o que, em tese, deveria desembocar num órgão sexual congruente com o cérebro. Já que, a priori, as glândulas da gônada que produzem ambos os sexos são derivados da mesma região gonadal que chamamos de corpúsculo. Ao lado dos rins em desenvolvimento, duas protuberâncias conhecidas como os brotos gonadais emergem ao lado de dois pares de dutos, um dos quais pode formar o útero e trompas de Falópio, e o outro o encanamento genital interno masculino: os epidídimas, o vaso deferencial e as vesículas seminais. A gônada então liga a via do desenvolvimento para se tornar um ovário ou um testículo. Se um testículo se desenvolve, ele secreta testosterona (que mantém os dutos deferentes, os epidídimos) e outros hormônios que atrofiam os ovários, as tubas, o presumido útero e as trompas de Falópio. Se a gônada se tornar um ovário, secretam estrógeno (que mantém os anexos - tubas, útero) e a falta ou a diminuição de testosterona atrofia os testículos e os dutos. Ambos têm potencial de caminhar em ambos os sentidos. Sendo, os sexos, sistemas que se instalam e inibem o outro. Há, portanto, uma variabilidade. Na puberdade, os hormônios sexuais serão responsáveis por caracteres secundários.

Qualquer alteração nesses processos terão consequências dramáticas na sexualidade de um indivíduo. As mutações genéticas que afetam o desenvolvimento das gônadas podem resultar em uma pessoa com cromossomos XY que desenvolve características tipicamente femininas, enquanto que as alterações na sinalização hormonal podem fazer com que indivíduos XX se desenvolvam ao longo de linhas masculinas.

No passado, o desenvolvimento feminino foi entendido como a falta de um gene específico no cromossomo Y, era uma incompletude que fazia com que a mulher fosse mulher.
Um programa que não conseguia ser instalado e conduzia o corpo a uma passividade. Em 1990, foi descoberto o gene SRY, capaz de transformar em testículos as gônadas embrionárias. Sabemos que indivíduos XX que carregam um fragmento de Y que contém o gene SRY se desenvolvem como masculinos, embora possuam estrutura XX.

A ideia de feminilidade como sendo uma passividade foi definitivamente derrubada em 2001 pela descoberta de genes que promovem o desenvolvimento dos ovários e suprimem o dos testículos - chamados WNT-4 . Indivíduos XY com cópias extras deste gene podem desenvolver órgãos genitais e gônadas atípicos e um útero rudimentar e trompas de Falópio. Em 2011, os pesquisadores mostraram que, se outro gene chave do ovário, RSPO1 , não está funcionando normalmente, faz com que as pessoas XX desenvolvam uma ovópsis - uma gônada com áreas de desenvolvimento ovariano e testicular. São cópias extras de WNT-4 que causam atipias genitais, gonadais, úteros e tubas rudimentares em indivíduos XY.

Essas descobertas apontaram para um processo complexo de determinação do sexo, no qual a identidade da gônada emerge de uma conexão entre duas redes opostas de atividade gênica. Alterações na atividade ou quantidades de moléculas (como WNT-4) nas redes podem inclinar para o equilíbrio ou para afastar-se do sexo aparentemente designado pelos cromossomos. Assim, a identidade emerge num contexto de duas redes de genes com atividades opostas. Há vários sistemas em atividade e interagindo, de modo que o sexo não pode ser contido num sistema binário, ele é melhor definido pela "Biologia de sistemas".

Em 2011, foram descobertas alterações do gene RSPO1 que provoca aparecimento de ovotestis (gônada mista) em indivíduos XX. Estudos em camundongos sugerem que a gônada varia entre macho e fêmea ao longo da vida e sua permanência requeria manutenção genética constante.

Em 2009, descobriu-se que a desativação do gene Foxl2 em ratas já ADULTAS transforma células da granulosa em células de Sertoli e em 2011, que a inativação do gene Dmrt1 transformava células testiculares adultas em ovarianas, ou seja, o processo inverso.
"O fato de que isso acontece muito após o nascimento foi o grande choque" - Vincent Harley, geneticist who studies gonad development at the MIMR-PHI Institute for Medical Research in Melbourne

“A gônada não é a única fonte de diversidade no sexo. Muitos distúrbios de desenvolvimento sexual ocorrem por respostas alteradas à sinalizações hormonais das gônodas e de outras glândulas. O CAIS, por exemplo, surge quando os receptores não se ligam aos hormônios, geralmente porque os receptores que respondem aos hormônios não estão funcionando. Pessoas com CAIS possuem cromossomos Y e testículos internos, mas os genitais externos são do sexo feminino, e eles se desenvolvem como fêmeas na puberdade. Um DSD chamado hiperplasia adrenal congênita (CAH), por exemplo, faz com que o corpo produza quantidades excessivas de hormônios sexuais masculinos; indivíduos XX com esta condição nascem com genitália ambígua (um clitóris alargado e lábios fundidos que se assemelham a um escroto). Geralmente é causada por uma por bloqueio na produção de 21-hidroxilase. Outro gene, NR5A1 , é pesquisado porque as variações dele causam uma ampla gama de efeitos como hipotrofia gonodal, hipospádias e menopausa prematura.” - Ranna El-Khairi, John Achermann - Steroidogenic Factor-1 and Human Disease (2012), US National Library of Medicine - National Institutes of Health

Só recapitulando:
O gene tem que estar em boas condições, tem que mandar a informação hormonal correta e tem que haver uma quantidade x de hormônio produzido (e tem que ser a correta, claro). Evidente que não precisa ser um gênio pra perceber que a mais variada sorte de "disfunções biológicas" ocorrem, e ocorrem já na própria formação dos genes, em si. Como a chamada Síndrome de Turner (X0), Síndrome de Klinefelter (XXY, XXYY, XXXY, XXXXY), Síndrome de Jacobs (XYY), Super fêmeas (XXX, XXXX), Síndrome de insensibilização androgênica (XY em homens), distúrbio da diferenciação sexual testicular (homens XX) , Síndrome de Rokitansky , até disfunções no envio das informações na formação externa  do corpo desse feto , o que ocasiona os hermafroditas, os pseudo-hermafroditas femininos, masculinos, Síndrome AndrogenitalSíndrome do Testículo Feminilizante, etc. Arboleda Valerie e David Sandberg apontam que diversificação fenotípica afetam cerca de 1 em cada 100 pessoas, segundo eles:
"A determinação do sexo de mamíferos é o processo único pelo qual um único órgão, a gônada bipotencial, sofre um interruptor de desenvolvimento que promove sua diferenciação em um testículo ou um ovário. As interrupções deste processo genético complexo durante o desenvolvimento humano podem se manifestar como intersexuais. O desenvolvimento do sexo pode ser dividido em dois processos distintos: determinação do sexo, em que as gônadas bipotenciais formam testículos ou ovários e diferenciação sexual, nos quais os testículos ou ovários completamente formados segregam fatores locais e hormonais para direcionar a diferenciação de órgãos genitais internos e externos, bem como tecidos extragonadais como o cérebro. Intersexuais podem surgir de uma série de modificações genéticas, que se manifestam como um espectro de fenódias gonadais (disgênese gonadal para ovotestis) e genitais genitais (hipobases simples ou clitorregégia para genitais ambíguos). Os atributos físicos e as implicações médicas associadas aos intersexuais que famílias com recém-nascidos enfrentam afetam decisões como gênero de criação ou cirúrgia genital, e preocupações adicionais, como a incerteza sobre o desenvolvimento psicossexual da criança e desejos pessoais mais tarde na vida". - Arboleda Valerie and David Sandberg - DSDs: genetics, underlying pathologies and psychosexual differentiation

Já em 1959, Alfred Jost observou que, enquanto a testosterona era necessária para o desenvolvimento do mesonephric duct, a regressão do paramesonephric duct era devida a outra substância. Isto foi mais tarde relacionado ao paramesonephric inhibiting substance (MIS), uma glicoproteína dimérica de 140 kD que é produzida por células de sertoli. O MIS bloqueia o desenvolvimento de paramesonephric duct, promovendo sua regressão. Em resumo, Jost mostrou que a exposição pré-natal de embriões aos andrôgenos desenvolvem fenótipo XY e quando são privados ou são expostos a estrógenos que bloqueiam a testosterona, o feto tende a desenvolver-se como XX. Isso ficou conhecido como Paradigma de Jost (Jost Paradigm).

Em 2008, Wisniewski foi mais longe e mostrou que organismos dioicos XY com testículos já formados e níveis normais de andrógenos, mas que ao se remover os genes que controlam os receptores androgênicos, o organismo desenvolve um fenótipo feminino, incluindo - numa estrutura híbrida - órgãos genitais, comportamentos e orientação sexual. Assim, o lócus do receptor androgênico claramente passou a ser entendido como muito mais relevante do que a quantidade de hormônios que o indivíduo possui.

Alguns pesquisadores compreendem que a definição de DSD deve ser ampliada para incluir variações sutis de anatomia, como hipospádias suaves, nas quais a abertura uretral de um homem está na parte inferior do pênis e não na ponta. Nelas, inclusive, as uretras masculinas são muito mais similares à estruturação feminina. Muitas pessoas nunca descobrem sua condição, a menos que busquem ajuda para infertilidade ou descobriram isso através de algum outro tratamento com remédios. Em 2014, por exemplo, cirurgiões relataram que estavam operando uma hérnia em um homem, quando descobriram que ele tinha um útero. O homem tinha 70 anos e tinha quatro filhos.
"Há muita diversidade num homem ou mulher e áreas de intersecção nas quais uma pessoa não pode ser definida com clareza pela estrutura binária." - John Acherman - University College London's Institute of Child Health

Os diagnósticos de DSDs basearam-se em testes hormonais, inspeções anatômicas e imagens, seguidos de exames laboriosos de um gene por vez. Agora, os avanços nas técnicas genéticas significam que as equipes podem analisar múltiplos genes ao mesmo tempo, visando um diagnóstico genético direto e tornando o processo menos estressante para as famílias. Vilain (Diretor do Gender Based-Biology, University of California Health - Los Angeles, CA), por exemplo, está usando o sequenciamento de todo o exoma - que sequencia as regiões codificadoras de proteínas do genoma completo de uma pessoa - em pessoas XY com DSDs. No ano passado, sua equipe mostrou que o exome sequencial poderia oferecer um diagnóstico provável em 35% dos participantes do estudo cuja causa genética havia sido desconhecida.

O avanço das investigações sobre Intersexualidade evidentemente foram marcos no entendimento sobre o que é o sexo humano e, mais tarde, essas descobertas amadureceram e expandiram-se para atingir o debate de gênero.

É importante lembrar que a concepção médica tradicional entendeu que “é necessário normalizar e ajustar a anatomia do neonato intersex ao padrão morfológico condizente com o sexo que for ‘descoberto’” pela equipe multidisciplinar.

Contudo, Gil Guerra-Júnior e Andréa Maciel-Guerra chamam atenção para o fato de que a atipicidade anatômica do indivíduo intersex potencializa a relatividade dos “critérios rígidos” na definição de sexo.

A suposta necessidade de se ajustar a genitália da criança ao sexo “descoberto” era justificada pela crença de que seu bem-estar psicossexual não seria alcançado se houvesse uma incongruência entre seu fenótipo e a identidade de gênero que, pré-supunha-se, desenvolverá. Dito de outro modo, o corpo de todo bebê designado como “menina”, por exemplo, deverá apresentar uma vagina para que ela se “transforme”, se reconheça, e seja socialmente percebida como “mulher”; em relação aos meninos, é o pênis e os testículos que o farão se “transformar”, se reconhecer e ser socialmente reconhecido como “homem”.

Diversas Entidades de Pesquisa e estudos passaram a defender que a ambiguidade genital não põe em risco a vida nem a saúde da criança, que não há padrões absolutos para que se possa indicar a designação e gênero nos primeiros anos de vida, não se justificando, portanto, os riscos irreversíveis de uma cirurgia prematura, que o papel do médico, nos casos de G.A. é o de procurar identificar o gênero, e não o de construir um gênero com hormonioterapia ou cirurgia, a designação prematura do gênero é uma solução que não visa ao bem-estar da criança, alheia à ambiguidade nos primeiros anos de vida e a prematura designação sexual é realizada para atender aos interesses dos pais; sua verdadeira pretensão é a definição de um gênero social.

Formou-se um consenso de que se deve levar em consideração o potencial sofrimento psicossexual decorre das inúmeras intervenções cirúrgicas que os intersexuais sofrem e os benefícios prometidos pelos médicos (muitas vezes) não correspondem ao resultado a longo prazo dessas intervenções.

À irreversibilidade que caracteriza as propostas cirúrgicas de intervenção na chamada genitália ambígua de neonatos, se soma a sua incapacidade legal e cognitiva para oferecer consentimento. Assim, cabe a terceiros – pais ou responsáveis informados pela equipe multidisciplinar que diagnostica as ADS consentirem. É significativa a responsabilidade da equipe em seu convencimento, na medida em que lhe cabe esclarecer o que for necessário para a decisão dos pais, em sua maioria pessoas leigas e afligidas pela situação de seu/sua filho/a. Neste contexto, é razoável considerar que pais autorizam tais procedimentos não apenas porque confiam na palavra do médico, mas porque acreditam estar atuando em prol do melhor interesse daquela criança.

Os argumentos apresentados aos pais, contudo, muitas vezes não conseguem convencê-los. Nem para um lado, nem para outro.
Paula Sandrine Machado, por exemplo, relata que acompanhou em uma maternidade no Rio Grande do Sul, por ocasião da revelação aos pais do diagnóstico de GA em seu filho recém-nascido.
Embora, a olho nu, as “pequenas” dimensões daquele phallus remetessem à ideia de um pênis, para a equipe multidisciplinar, a “melhor solução” seria a sua remoção cirúrgica, seguida da criação de uma vagina. Na opinião de seus integrantes, esta seria a única possibilidade de redução dos danos psíquicos a que aquela criança estaria exposta ao longo de sua vida.
Mostrando-se surpreso com aquela “solução”, o pai revelou à equipe que o seu próprio pênis era igualmente pequeno, o que não representara qualquer empecilho para fecundar sua esposa. A avó paterna, também presente, disse que o pênis de seu marido também era “pequeno” e que ambos tiveram uma vida sexual bastante satisfatória.

Anne Fausto Sterling analisando casos assim, entende que a “urgência” em se remover o micropênis que muitas vezes é observado no momento do nascimento de um bebê pode se revelar uma decisão altamente equivocada, na medida em que esse mesmo pênis, sem sofrer qualquer intervenção médica, pode se desenvolver durante a puberdade, atingindo o que se considera como “tamanho normal”.

A preocupação dos médicos com indivíduos intersex, contudo, não é sem razão de ser. Autores como Adrienne Rich, Megan Chawansky ou Ian Morland investigam o que chamam de “the locker-room rethoric (retórica do vestiário)” na sociedade norte-americana, sinalizando que esses ambientes são particularmente desestabilizadores para indivíduos que sofrem com alguma questão ligada à intersexualidade ou que “não têm sua anatomia genital padronizada”. Segundo eles, o vestiário é utilizado pelos pares não apenas como locais para simples troca de roupas antes ou após atividades desportivas, mas constituem verdadeiros espaços em que a hegemonia patriarcal é reafirmada naquilo que Adrienne Rich denominou “heterossexualidade compulsória”. No vestiário, a superioridade física masculina não é tida como apenas um dado biológico, mas um constructo ideológico. No tocante ao masculino, esse constructo deve ser (re)produzido por meio de performances rituais, as quais promovem o narcisismo e excluem a vulnerabilidade. Ao mesmo tempo em que exibe corpos moldados para serem invencíveis, o vestiário acaba por tornar vulneráveis esses mesmos corpos. Em resumo, o vestiário oferece um espaço masculino único, no qual mitos e verdades sobre gênero e sexualidade são criados e desafiados. Nesse contexto, Morland chama atenção para o fato de que o ambiente propicia “comparações indesejáveis”, potencialmente resultando em eventual humilhação do usuário que é percebido como portador de uma genitália atípica. Outro fator considerado psicologicamente “desestabilizador” é a incapacidade que apresenta o menino portador de hipospádias de urinar em pé.

Anibal Guimarães comenta que “A julgar pelas insubordinações de determinados médicos à propostas terapêuticas até então consagradas para os casos de GA em neonatos, pelas críticas de certos pesquisadores na área da saúde, e pelo posicionamento de alguns setores dos movimentos sociais em favor da moratória das cirurgias, parece questionável a legitimidade da Medicina para dizer o que é normal e o que é patológico na questão da intersexualidade. Embora não sejam compulsórias, as cirurgias genitais em neonatos por conta da aparência ambígua que podem apresentar pode ser interpretado como um gesto egoísta e lesivo de pais ou responsáveis.”

Então, nós poderíamos pensar no continnum de Freud numerado de 0 a 100 em que em um extremo (zero) teríamos um macho externamente formado e completo, em outro extremo (cem), teríamos uma fêmea externamente formada e completa e, no meio, (cinquenta) nós teríamos um "hermafrodita irrestrito" (chamado de intersexual) - que é aquele que não desenvolveu nem ovário, nem testículo, possui uma estrutura híbrida que é chamada de ovotestis, que desenvolve os dois tecidos e é estéril. Também tem algo que lembra um pênis, mas embaixo tem algo que lembra uma vagina, etc. Entre o zero, o cinquenta e o cem, (e poderíamos fazer analogias com números como 80, 40, 60) teríamos os mais diferentes casos, por exemplo, um indivíduo que é geneticamente uma mulher (XX), mas que, de alguma forma, a gônada produz testosterona. O que faz com que a pessoa pareça um homem externamente, vai ter barba, pelos, ombros largos, não tem seios, tem voz grossa, mas tem um ovários e tem um saco escrotal masculino (muitas vezes não tem testículos). Teríamos também um indivíduo geneticamente homem (XY), mas que tem corpo de mulher, uma vagina rasa, formação de seios, trejeitos mais delicados, mas é um homem. O testículo fica na virilha (testículo inguinal) e há outros intermediários entre os extremos e o centro, como o hermafrodita que tem um ovotestis e um ovário. Hermafrodita que tem um ovotestis e um testículo (favor ler trecho do artigo de revisão do Sanger Institue Britânico na nota de rodapé abaixo sobre reprodução de interssexuais para complementar o entendimento), etc, etc, etc...

O debate sobre a intersexualidade e os elementos determinantes do sexo eram intensos já na Antiguidade. O psiquiatra norte-americano Vernon Rosario diz em The History of Aphallia and the Intersexual Challenge to Sex/Gender que “desde a era clássica, médicos e biologistas apresentam fascínio pelo hermafroditismo, visto não apenas como curiosidade da natureza, mas como fenômeno central à compreensão da geração animal, ao desenvolvimento embriológico e à diferenciação sexual”. Chamando atenção para o fato de que as “teorias biológicas do hermafroditismo também refletem construções culturais e históricas mais amplas de sexo e gênero”. Não obstante as especulações que até hoje se fazem em torno de sua figura mítica, “não estava claro” se seu corpo possuía, ao mesmo tempo, partes femininas e masculinas, ou se era “de um sexo intermediário”. A insistência na morfologia/anatômica do hermafrodita se deve à centralidade que, desde a Antiguidade, a questão adquiriu para os debates da Filosofia e da Biologia sobre o hermafroditismo.

As narrativas mitológicas e históricas que tratam da figura do hermafrodita são elucidativas. Michel Foucault diz que, durante muito tempo, era consenso que hermafroditas “simplesmente” tinham dois sexos. Para o autor, a persistência das sociedades ocidentais modernas em afirmar o contrário é sinal de “teimosia”. Embora, ao longo da Antiguidade, existam evidências de “numerosas execuções” de hermafroditas, são também “abundantes” as decisões judiciais em sentido contrário.

Michel Foucault aponta que era comum ser atribuído o status de “hermafrodita” àqueles “em quem os dois sexos fossem justapostos”. Por ocasião do batismo, cabia ao pai ou ao padrinho “determinar” o sexo da criança, o qual, se necessário, atenderia a critérios como maior “vigor” ou “calor”. Ao entrar na vida adulta e se aproximar a idade do casamento, era por vezes facultado ao hermafrodita mudar o sexo que lhe havia sido originalmente atribuído, ou nele permanecer. Contudo, a partir de sua própria decisão, era “imperativo” que não mais voltasse atrás, sob pena de ser declarado e condenado como “sodomita”. Eram “as mudanças quanto à opção e não a [confusão anatômica] dos sexos que levava à condenação dos hermafroditas [tal como se pode observar] nos registros que, na França, sobrevivem do período compreendido entre a Idade Média e a Renascença”.

Nos textos de Hipócrates no século IV a.C. e de Cláudio Galeno no século II d.C., o hermafroditismo era representado como uma forma intermediária no espectro que compreendia, em suas extremidades, o homem e a mulher no seu mais “puro” estado, isto é, sem nada que lhes alterasse a essência/substância. Aristóteles pensava que não apenas homens e mulheres tinham naturezas fundamentalmente opostas como, também, “hermafroditas possuíam um apêndice sexual suplementar, oposto a seu sexo fundamental, análogo a um sexto dedo ou terceiro mamilo”. A partir do período clássico, Vernon Rosario diz que o hermafroditismo foi “fundamental para a teratologia, isto é, o estudo das assim chamadas monstruosidades, maravilhas e prodígios da natureza”.

O mitólogo Mircea Eliade destaca alguns pontos na trajetória do mito do andrógino na Europa no período compreendido entre a Antiguidade e a Renascença. Em Mefistófoles e o Andrógino (1999), analisa Seráfita, “o romance fantástico mais sedutor de Balzac”.

Eliade acredita que Balzac, ao interpretar o andrógino como “imagem exemplar do homem perfeito”, conseguiu dar “um brilho sem igual a um tema fundamental da antropologia arcaica” ao fazer de Seráfita, “não um anjo”, mas “um ser total”. Segundo Eliade, esta foi “a última grande criação literária europeia cujo motivo central é o mito do andrógino”.

Outros autores que, mais à frente, retomaram “esporadicamente” o tema, o fizeram “sempre através de um hermafroditismo mórbido, até satânico”, o que, para Eliade, teria levado à “degradação do símbolo”. Segundo o autor, tal fato pode ser atribuído aos escritores do decadentismo francês e inglês, os quais compreenderam o andrógino “unicamente” como “um hermafrodita no qual os dois sexos coexistem anatômica e fisiologicamente”. Tal concepção destacava não “uma plenitude devida à fusão dos sexos” – o que levaria, por conseguinte, ao “aparecimento de uma nova humanidade” e a “uma nova consciência, apolar” -, mas “uma superabundância de possibilidades eróticas”, isto é, “uma suposta perfeição sensual, resultante da presença ativa dos dois sexos”.

Para Eliade, essa compreensão “em planos cada vez mais grosseiros” dos escritores decadentes aponta para a incapacidade do espírito “de apreender a significação metafísica de um símbolo”. Tal concepção do hermafrodita é, “muito provavelmente”, o resultado do “exame atento de certas obras da escultura antiga”, e reflete a ignorância em perceber o descompasso que havia entre uma situação ideal e outra de fato. Ao “hermafrodita concreto, anatômico”, representado pela criança que mostrava sinais de hermafroditismo ao nascer e era morta pelos próprios pais, porque considerada “uma aberração da natureza ou um sinal da cólera dos deuses”, se opunha o “andrógino ritual”, o qual “constituía um modelo, pois implicava não a cumulação dos órgãos anatômicos, mas, simbolicamente, a totalidade dos poderes mágico-religiosos associados aos dois sexos”.

Em relação ao que os românticos alemães pensavam do andrógino, para eles, “o andrógino seria o tipo de homem perfeito do futuro”. Citando Schlegel, Eliade diz que o autor, em seu Über die Diotima, critica “a acentuação dos caracteres exclusivamente masculinos ou femininos a que se chega pela educação e pelos costumes modernos”, uma vez que “a finalidade para a qual deve tender a espécie humana é a reintegração progressiva dos sexos até a obtenção da androginia”.

Continuando no relato de Vernon Rosario, a teratologia experimental iniciou sua era moderna com a pesquisa sistemática do naturalista francês Geoffroy Saint-Hilaire (1832-?), e se intensificou ao longo do século XIX, quando médicos se lançaram a debater o que diferenciaria o “verdadeiro” do “pseudo” hermafroditismo. À época, o pensamento neo-aristotélico contribuiu para que se pensasse que a maioria dos indivíduos que apresentavam genitália ambígua eram, na verdade, pseudo-hermafroditas, dado que [ocultariam] um sexo ‘verdadeiro’, masculino ou feminino; poucas eram as pessoas que tinham [simultaneamente] gônadas masculina e feminina que lhes permitisse serem qualificadas como ‘verdadeiras hermafroditas’.

Dadas as limitações da Medicina de então, bem como os elevados riscos das cirurgias exploratórias até, pelo menos, o século XX, “o desafio era como determinar o sexo verdadeiro presumido”. Já no início da era moderna, muitos médicos tendiam a confiar nas “características anatômicas e estereótipos de psicologia e comportamento de gênero”. À época vitoriana, era esse o foco de atenção: “para os médicos empenhados em determinar o sexo de adultos que apresentavam ambiguidade [sexual], mais importante do que recorrer ao seu exame genital, era o exame da masculinidade ou feminilidade relativa observada em seu comportamento e temperamento”. Como emenda Alice Dreger em Progress and Politics in the Intersex Rights Movement, além do minucioso exame físico a que estariam sujeitas pessoas sobre as quais pairassem dúvidas quanto ao seu sexo “verdadeiro”, outro critério dominante à época era o conhecimento do “sexo” dos parceiros eróticos dos pacientes daqueles médicos, “com vistas a se evitar a ‘perversão sexual’ resultante de uma aliança entre pessoas de mesmo sexo”. Em resumo, o veredito final quanto ao sexo da pessoa sob exame dependeria da mais adequada equação entre a estrita observância de seu comportamento de gênero e, também, o sexo e o comportamento de gênero das pessoas com as quais ela estabelecesse relacionamentos de natureza erótica, sexual e afetiva.

Os avanços obtidos na Microscopia no século XVIII possibilitaram “novas perspectivas para a observação do processo de construção de organismos vivos”. Com o anatomista francês Bichat, o início do século XIX assistiu à inauguração de um novo campo da pesquisa biomédica: a Histologia, o que tornou possível aos pesquisadores compreenderem a histologia gonadal e distinguir tecido testicular de tecido ovariano. Em 1876, Thomas Albrecht Edwin Klebs publicou o Handbuch der Pathologischen Anatomie em que se propunha investigar a natureza das glândulas genitais e suas "anomalias androgênicas". A partir disso, classificou os casos androgenitais em três grupos básicos: pseudo-hermafroditismo masculino (PHM - genitália ambígua com testículos), pseudo-hermafroditismo feminino (PHF - genitália ambígua com ovários) e hermafroditismo verdadeiro (HV - testículo e ovário, com ou sem genitália ambígua). Klebs passou a defender que a natureza dos tecidos genitais eram "o único fator capaz de definir o sexo biológico de uma pessoa”. De modo que independentemente da aparência genital externa, a identificação de tecidos testicular e ovariano era o que determinava o sexo da referida pessoa. Todos os demais casos onde não se verificasse essa simultaneidade passaram a ser denominados pseudo-hermafroditas, dada a sua incongruência entre a natureza do tecido gonadal encontrado e a genitália externa, pouco importando a sua discrepância, seja masculina ou feminina. Anne Fausto-Sterling denomina essa época de "era das gônodas". A partir de então, em lugar do recurso ao “senso comum”, da análise de uma curandeira ou parteira, o microscópio e novos métodos de exame tornaram-se as principais ferramentas da ciência para identificar o “verdadeiro” sexo de um indivíduo. Conta Fausto-Sterling que “rapidamente, imagens dos corpos de hermafroditas desapareceram dos periódicos médicos, sendo substituídos por fotografias abstratas de porções de tecido gonadal, finamente fatiadas, cuidadosamente coloridas”.

Foucault atribui às “teorias biológicas da sexualidade", às concepções filosóficas sobre a natureza do indivíduo, às formas de controle administrativo em nações modernas e a paulatina rejeição da ideia de uma mistura de dois sexos em um só corpo, o embrólio jurídico que sublimou a livre escolha e o acesso a direitos. Com a revelação por Michel Foucault do diário de Herculine Barbin – hermafrodita que viveu na França no século XIX – revelou-se não apenas todo seu sofrimento psíquico, físico e social como, também, evidenciou-se as enormes dificuldades do Judiciário no enfrentamento das questões ligadas ao gênero em humanos. Não menos importante, o drama vivido por Herculine acabou por expor a precariedade com que a Medicina compreendia a questão biológica. Embora transcorridos quase 150 anos de sua morte, o sofrimento de Herculine não perdeu relevância para a análise crítica do manejo da intersexualidade na atualidade. Muito pelo contrário, sua biografia corrobora significativamente os relatos de sofrimento que, desde o final do século XX, têm sido relatados por indivíduos intersexo que sofreram cirurgias genitais em sua infância e contestam a alegada beneficência como justificativa médica para sua realização. Mais do que tudo, o caso de Herculine sugere a complexidade que envolve a intersexualidade e reforça a relevância da pergunta que faz Foucault em sua introdução: “precisamos, verdadeiramente, de um sexo verdadeiro?”.

De maneira resumida, é essa a história de Herculine: menina pobre e miserável, foi criada em um ambiente quase exclusivamente feminino, fortemente religioso. Interna em um convento no interior da França, Herculine, com toda a discrição que lhe era peculiar, acabou desenvolvendo uma relação de natureza erótica, sexual e afetiva com outra também interna. Sobre sua identidade sexual não pairava dúvida no ambiente em que vivia, e ela era chamada de “Alexina” por seus familiares. Um dia, sem conseguir facilmente identificar o mal físico que a afligia, procurou a orientação do padre local. Este, reconhecendo suas próprias limitações, indicou-a a um médico. Em meio aos procedimentos de rotina que julgou necessário realizar, o médico surpreendentemente descobriu que os males de que se queixava Herculine eram devidos à revelação de “seu verdadeiro sexo”.

Comunicado o fato às autoridades judiciárias para que se adotassem as providências legais que envolviam aquela situação de “fraude”, noticiou-se o escândalo que era saber-se que um “homem” vivia em um convento de freiras. Confrontada, Herculine viu-se obrigada à mudança legal de seu status civil – agora, “homem” – e foi-se embora do campo para Paris. Lá, empregou-se na companhia de caminhos de ferro para o desempenho de atividades tipicamente masculinas. Sozinha e infeliz, sem conhecer ninguém, Herculine foi incapaz de se adaptar à nova identidade e, por fim, suicidou-se.

Herculine começou a escrever seu diário apenas depois que “sua nova identidade havia sido descoberta e estabelecida. Sua ‘verdadeira’ e ‘definitiva’ identidade”. Diz Foucault que, ao escrevê-lo, seu ponto de vista não era o de um homem que contava suas sensações e experiências quando não era “ele próprio”. Suas memórias foram escritas em período próximo a seu suicídio, quando ainda se considerava “sem um sexo definitivo” e se via privada dos prazeres que experimentara exatamente “porque não o tinha, ou não tinha inteiramente o mesmo sexo que as moças entre as quais viveu”. Para Foucault, o que Herculine evoca em seu passado é a felicidade que representava viver no “limbo da não-identidade”, a qual, “paradoxalmente, estava protegida pelo estilo de vida daquelas sociedades fechadas, obtusas [ mas não menos propícias à] intimidade”, onde, “de maneira compulsória e proibida ao mesmo tempo”, só é feliz aquele sujeito cujo reconhecimento legal e social decorre exclusivamente do fato de que tem apenas um sexo. Prossegue dizendo que o “escândalo” que representou a descoberta da 'verdade' sobre o sexo de Herculine é emblemático das investigações médicas realizadas no período compreendido entre os anos de 1860 e 1870. Nesse ambiente científico, decifrar os mistérios da identidade sexual visava não apenas “estabelecer o verdadeiro sexo do hermafrodita mas, também, identificar, classificar e caracterizar os diferentes tipos de perversão”. Em resumo, prossegue Foucault, “tais investigações lidavam com o problema das anomalias sexuais no indivíduo e na raça”. A se conferir credibilidade a seu diário, sugere Foucault, tem-se a impressão de que, ao contrário do “mundo de sentimentos” que descreve, a identidade dos parceiros ou, “acima de tudo”, o caráter enigmático de quem toda a história está centrada, “não tinham importância”.

Diz ainda que "nossa atual tolerância à determinadas condutas que se insurgem contra a lei se opõe ao fato de que continuamos a pensar que certas práticas são um insulto à ‘verdade’ (...)  uma maneira de agir não adequada à realidade”.

Alice Dreger (bioeticista) e Elizabeth Reis (historiadora) realizaram, cada uma, vastas pesquisas que ajudaram a promover o resgate da história médica do hermafroditismo no “mundo civilizado”. Curiosamente, seus trabalhos têm contribuído significativamente para a reflexão de pesquisadores de diferentes campos, e também do movimento social, em temas que extrapolam o interesse exclusivamente médico para muito além de uma discussão sobre “mulheres de barba” e “homens que menstruam”.

Em Hermaphrodites and the Medical Invention of Sex, Alice Dreger investiga o tratamento biomédico do hermafroditismo na Inglaterra e na França do século XIX e início do XX. Em uma época em que a Medicina, a ciência e a própria anatomia não haviam, ainda, alcançado a autoridade cultural que lhes seria atribuída posteriormente, não faltavam “autoridades” na vida das pessoas hermafroditas: “de parteiras a avós, passando por cirurgiões e médicos, amantes e amigos, além, é claro, da própria pessoa”, todos se sentiam no direito – e obrigação – de manifestar “sua posição moral” para o problema. Para Dreger, “o encontro [formal] entre hermafroditas e médicos” favorece a análise de duas importantes questões: a forma como, cada vez mais, especialistas biomédicos conseguiram amealhar habilidade e autoridade ao longo dos tempos para “afirmar os feitos e significados da carne de uma pessoa para uma dada identidade” e como, paulatinamente, “fora do ambiente hospitalar, das clínicas e dos periódicos médico-científicos, os hermafroditas foram se tornando, cada vez mais, invisíveis”. No prólogo de sua obra, Alice Dreger dá destaque à frase que proferiu um Dr. Dandois (um médico em seguida ao início do exame físico de uma paciente em uma clínica cirúrgica na Bélgica em 1886): “mas, minha senhora, sois um homem!”. Casada há dois meses em primeiras núpcias, Sophie V. tinha 42 anos de idade e trabalhava como empregada doméstica. Sua procura pelo médico se deveu à dificuldade que seu marido encontrava para, “consumir o ato conjugal, não obstante os melhores esforços do casal”. Segundo a paciente, ao marido não era possível “penetrar a vagina da esposa”.

Sem encontrar uma justificativa para aquela situação, Sophie desejava saber não apenas o quê havia de errado mas, também, se seu problema poderia ser solucionado. Para o médico, a resposta para aquele problema não demorou a ser elucidada: “Sophie era realmente um homem, não importando o que ela pensava de si mesmo e o que seu marido pensava dela”. Seu "pênis encontrava-se no lugar habitual” e, embora lhe faltasse um orifício na ponta como todos os demais pênis, era coberto por uma glande e - tal como fora, de maneira delicada, escrito no relatório médico - “estava suscetível à ereção”. No tocante à urina, diz o relato, “era aparentemente excretada por um orifício na base de seu ‘pênis’”.

Aquilo que se acreditava serem os lábios de sua vagina era, na verdade, o escroto bipartido e, na opinião do médico, continha “pelo menos um testículo”. Se faltava a Sophie a densa penugem facial que tinham os homens de sua idade, tampouco lhe faltava os esperados sinais de feminilidade, era delicada, seus ombros e cintura eram "meigos", sua "voz delicada como uma pluma", mas seus mamilos eram tipicamente masculinos. Nas palavras do médico, não tardou para que Sophie confessasse ao médico que “os seios de seu marido eram muito maiores” que os dela. Era grande a incredulidade de Sophie ao que lhe dizia o médico. Contudo, para ele, o problema da paciente “não era a sua anatomia mas, sim, a sua compreensão de anatomia”.

Na apresentação do caso a uma revista científica de então, seu autor, o médico Dandois, menciona que, por ocasião do nascimento de Sophie, houve algum questionamento por parte dos familiares a respeito de seu sexo. Levada a um médico, esse não conseguiu esclarecer “a coisa” o suficiente e pediu que a criança lhe fosse trazida de volta algum tempo depois. Com medo de que o médico pudesse, “acidentalmente, machuca-la ou até mesmo mata-la por conta de suas investigações”, os familiares preferiram não seguir sua recomendação e lá não voltaram mais. Por conta própria, os familiares decidiram que o bebê deveria ser uma menina – à época, “seus genitais pareciam bem femininos” – e assim a criaram. Ao que tudo indica, os familiares acertaram aleatoriamente a identidade de gênero de Sophie, que se via definitivamente como mulher. O testículo de Sophie foi interpretado como uma "hérnia" e se, como diagnosticou o médico, aquela “hérnia” era um testículo que descera, e Sophie estava casada com um homem, como se deveria proceder? A resposta, diz Dreger, pareceu “bastante simples” para o médico: “se Sophie tinha testículos e um pênis, ela era certamente um homem. Então, independentemente do que ela, marido, familiares e amigos pensassem àquele respeito, ela não poderia estar casada, pois não existe casamento verdadeiro ou legal entre dois homens. Ela deveria ter seu status civil formalmente alterado para o gênero masculino, seu casamento oficialmente anulado, e deveria começar a agir em conformidade a seu ‘verdadeiro sexo’. Sophie era um homem”, estava decretado pela autoridade médica, e tal diagnóstico logo seria chancelado pela autoridade judiciária competente.

Mas a simplicidade da situação evidentemente representou caos para Sophie e seu marido. Diz Dreger: “Sophie se sente como mulher, se veste como mulher, e sempre foi mulher. Que diferença faria se parte de sua anatomia parecia pouco usual? Ela era mulher. Ela era casada com um homem a quem amava como marido, o qual, por sua vez, a amava como esposa. Sophie pensou que o referido médico haveria de estar louco, equivocado, confuso ou, para dizer o mínimo, não merecia atenção, visto que ela não tinha interesse em, repentinamente, se tornar um homem”. Como ressaltado anteriormente, para o médico, a questão não era “tornar-se um homem”, afinal, para ele, Sophie “sempre” o fora. O problema de Sophie era, simplesmente, “aceitar a verdade da carne”. No resumo da ópera, Sophie também cometeu suicídio.

Situações como esta – sugere Dreger – demonstram a qualidade e os significados dos interesses então em jogo e apontam a existência de um regime de cooperação que se impunha entre sujeitos e médicos. Médicos frequentemente se viam “perturbados” diante da “bagunça conceitual e prática da vida amorosa de hermafroditas”. Mesmo que concepções “científicas” de anatomia e fisiologia orientassem suas práticas, para eles, algumas situações com que se deparavam cotidianamente em seus consultórios não eram de fácil interpretação e resolução. Com orientação expressa para abafar ao máximo possíveis repercussões, uma vez que a Academia preocupava-se em “evitar que a desordem sexual [resultante do hermafroditismo] se espalhasse”. Assim, médicos resolveram atribuir a si a responsabilidade de “ordená-la”.

Assim, voltando à Inglaterra e França do século XIX, temos as consequências lógicas do fervor cientificista, racionalista e iluminista apregoando o inatismo ou o determinismo genético (nature): ou seja, que os caracteres exatificados da Biologia eram suficientes para determinar sexo e gênero e que esses (assim como outros) componentes da natureza não bebiam de relatividades advindas do meio social ou do ambiente (nurture). Médicos e cientistas, obstinados a encontrar “uma definição de masculinidade e feminilidade, [ao mesmo tempo], rigorosa, convincente e permanente”. Decidiram atribuir ao tecido das gônadas essa responsabilidade. Não obstante, para Dreger, buscar definir o sexo de uma pessoa a partir da exclusiva observação da anatomia de suas gônadas – isto é, ovários ou testículos - significou limitar a “um único traço” toda a sua complexidade, e fez desse “um sistema de classificação sexual extraordinário e uniforme”. Não sem razão, a interpretação do exercício da sexualidade de hermafroditas, ou seja, seus desejos e atos, mais do que esclarecer a Medicina para a diversidade que lhes era apresentada, representou um desafio.

Contudo, se na segunda metade do século XIX a Medicina estava obstinada com o estabelecimento de critérios que servissem para definir o que era um “homem”, uma “mulher” e um “hermafrodita”, Dreger revela que tampouco havia unanimidade entre seus profissionais quanto ao que estava em disputa. A rigidez de critérios pretendida desafiava alguns médicos, dadas as suas discordâncias quanto às “essências e significados de feminilidade e masculinidade” a partir do que sua prática médica revelava. Ao invés de estar restrito a um pequeno espaço de tecido e rigidamente delimitado, como pretendia a Medicina Microbiológica, “o sexo parecia escorregar e deslizar por todo o corpo”, aponta Dreger ao comentar as variadas percepções médicas de então. Não surpreende, portanto, que as discussões que eram travadas indicassem “uma ativa negociação” quanto a “quais atributos e partes do corpo são, essencial e significativamente, masculinas e femininas” e demonstrassem, ao final, a “variedade de opiniões [médicas] e possibilidades que daí resultaram”.

Em sua obra Bodies in doubt, Elizabeth Reis estende, para além do discurso médico, sua análise sobre o hermafroditismo nos Estados Unidos da América desde o século XVIII até os dias atuais, e passa também ao exame da literatura popular que ali floresceu. Para a autora, “a prática médica não pode ser compreendida fora do contexto cultural em que se encontra”, na medida em que suas respostas são “profundamente influenciadas por [determinados valores e] preocupações sociais a respeito [, por exemplo,] de casamento e heterossexualidade”. A autora diz que os “valores e ansiedades da sociedade em geral conferem ao manejo médico, mais do que um esforço científico, um significado cultural”. E se o secularismo tomou da Igreja a investigação científica (o que - óbvio - preparou o terreno para novas percepções de sexo e gênero), a Medicina - por outro lado - herdou a cosmovisão, a ótica e a moral de 1600 anos de cristianismo, tal qual deve ser considerado que os médicos seculares eram também cristãos. Dentro dessa lógica, o fervor secularista conjugado com a “ansiedade quanto à incerteza” que, de modo geral, corpos “ambíguos” provocavam entre a população (em sua quase-totalidade religiosa, claro) contribuiu significativamente para que, ao final, caísse nas mãos da Medicina autoridade para definir e sustentar, continua e indefinidamente, “um sistema baseado na fixidez de normas de sexo e gênero”.

Na América de então, muitos médicos e populares não acreditavam na existência, entre humanos, da figura do hermafrodita, na forma como essa era então definida, afinal, “jamais se havia encontrado um ser humano que reunisse [no mesmo corpo] um conjunto total de órgãos masculinos e femininos. Tecnicamente, os médicos estavam certos. A figura mitológica grega do hermafrodita não tinha sua contrapartida no mundo humano”. Segundo a autora, “manuais de jurisprudência médica e tratados de ginecologia do século XVIII duvidavam da existência de hermafroditas ‘perfeitos’ e, em seu lugar, afirmavam que muitas mulheres assim consideradas eram simplesmente mulheres com clitóris aumentados”. Para algumas “autoridades médicas”, tais erros diagnósticos resultavam da “ignorância da anatomia humana, particularmente a feminina”. Muitos que diagnosticavam como “grande” o tamanho de um determinado clitóris acreditavam que esse era um “presságio” de uma condição sexualmente perigosa, a qual poderia resultar em “dois males”: (i) dificuldade no coito heterossexual, de caráter monogâmico, no âmbito do casamento, e (ii) a promoção de relações sexuais entre mulheres.

A perspectiva legal e médica do hermafroditismo no ambiente colonial norte-americano extrapolava o âmbito da anatomia. Desconhecendo a “existência de hormônios e cromossomos”, e tecnicamente impossibilitados a realizar a “inspeção interna das gônadas”, médicos e ministros da religião viam no nascimento de “monstros” sinais da providência divina ou, então, do diabólico. Mães eram frequentemente culpabilizadas pela anatomia monstruosa de seus bebês dado que, no imaginário religioso cristão-popular da época, seria a natureza do pensamento materno durante o período da gestação a responsável em provocar o surgimento destas “anomalias de nascimento”. Acreditavam as pessoas, de maneira geral, que o mero desejo da gestante de comer determinado alimento, quando não satisfeito, poderia, por exemplo, provocar determinados “defeitos” no bebê, os quais seriam imediatamente a ele associados. É o caso da mulher que, durante a gestação de seu filho, desejava comer galinha, mas não teve atendido seu desejo; ao nascer, seu filho ostentava uma espécie de “rabo” que, aos olhos das demais pessoas, lembrava a referida parte da ave. Outras vezes, o pronunciamento de médicos e parteiras a respeito do sexo da criança a quem assistiam eram tão poderosos que, no âmbito da sexualidade e da privacidade, serviam para solucionar polêmicas a respeito da suspeita de ilegitimidade de filhos, impotência do pai, confirmar ou negar acusações de estupro sofrido, ou consubstanciar procedimentos de divórcio.

Elizabeth Reis sugere que “corpos intersexo sempre foram marcados como ‘outro’: monstruoso, sinistro, ameaçador, inferior e infeliz”. Consequentemente, abominação e ojeriza eram sentimentos realçados nos relatórios médicos americanos dos séculos XVIII e XIX para com seus pacientes hermafroditas. Segundo a autora, apenas em período posterior é que os médicos começaram a demonstrar empatia pelos dramas e sofrimentos que lhes eram confiados, e passaram a se preocupar em acertar nas decisões que tomavam para os tratamentos oferecidos. Também salienta que havia na América uma interseção entre as preocupações médicas envolvendo raça e hermafroditismo.

Durante o século XIX, muitos artigos médico-científicos sobre casos de hermafroditismo que eram publicados “sugeriam que monstruosidade e negritude caminhavam lado a lado”. A inquietante perspectiva de que indivíduos “poderiam, repentinamente, mudar de sexo – como, aparentemente, era o caso de alguns hermafroditas -” estabelecia um paralelo com a “preocupação anterior da Nação”, isto é, a questão da “classificação racial” e, por extensão, a possibilidade de uma “identidade racial mutável”. A insistência que, no século XIX, teve a Medicina em, afinal, não mais afirmar a ambiguidade do sexo de um indivíduo mas, apenas, afirmar a sua certeza, contribuiu para disseminar a ideia de que o sexo, assim, como a raça, eram coisas “descomplicadas, permanentes, de fácil determinação”. Para Reis, tal posição contribuiu para o asseguramento do status legal de homens e mulheres. Como bem sugere Dreger, “pode-se atribuir ao interesse médico difuso a manutenção de fronteiras bem reforçadas - desobstruídas, distintas e ‘naturalmente’ justificadas - do sexo social”.

Berenice Bento reitera em A Reinvenção do Corpo: Sexualidade e gênero na experiência transexual que o diário de Herculine Barbin, assim como casos variados similares que ela cita, apontam para os fundamentos do “sistema sexo-gênero, os quais se baseiam na inequívoca e absoluta diferenciação entre os dois gêneros. De maneira bastante simplificada, pode-se dizer que é assim que o mesmo está estruturado: homens são homens, mulheres são mulheres. Homens têm pênis, mulheres têm vagina; homens são masculinos, mulheres são femininas. Homens são ativos e devem penetrar mulheres, de modo a demonstrar seu poder; mulheres devem ser passivas e submissas aos homens, todos os homens, não importam quem sejam esses homens. Pênis devem ser longos e, para fins de prazer e reprodução, devem ter preservada sua capacidade penetrativa em uma vagina; clitóris devem ter dimensões mínimas, de modo a não interferir com o ato penetrativo masculino, nem representar uma possibilidade de funcionar como instrumento de penetração – o pênis feminino - em homens e mulheres. O phallus feminino não deve jamais ser comparado, em sua eventual potência, ao phallus masculino. Da mulher e do homem se espera exclusivamente o sexo de natureza heterossexual, no formato penianovaginal, com fins de procriação. Mais do que qualquer outra coisa, mulheres devem ter preservada sua função reprodutiva e sua vagina deve estar pronta para receber em seu interior o pênis masculino. Assim como um homem deve parecer homem, ter atributos físicos, personalidade e carácter exclusivamente masculinos, uma mulher deve igualmente parecer mulher, isto é, ter atributos físicos, personalidade e características exclusivamente femininas. Enfim, ser homem é não ser mulher.”.

A "era das gônodas" foi sendo paulatinamente descartada a partir de 1930 graças às descobertas endocrinológicas, à disseminação da anestesia e o aprimoramento das técnicas cirúrgicas, a “supressão cirúrgica e hormonal” da intersexualidade transformou-se, para a Medicina, em uma nova perspectiva de seu enfrentamento. Em sua tentativa de esquematizar a história médica do hermafroditismo, Vernon Rosario considera que um propulsor da evolução dessas descobertas foram os anos imediatamente seguintes à 2ª Guerra Mundial. O governo dos Estados Unidos, preocupado com a necessária retomada internacional do crescimento econômico e as possíveis repercussões que os crescentes movimentos pela emancipação feminina e liberdades civis poderiam acarretar à estabilidade social mundial de maneira geral, ofereceu enormes incentivos às pesquisas científicas na área da sexualidade para melhor tentar compreender e embasar sua dinâmica tida como ideal, possibilitando a legitimidade para interferir na "lógica" dos movimentos feministas da época. Inúmeros centros de pesquisa em todo o país foram criados e receberam maciços investimentos federais. Questões como a retomada da estabilidade dos papéis sexuais e de gênero de homens e mulheres, de certa forma esgarçados e/ou questionados durante o esforço de guerra, eram fonte de crescente preocupação da, então, mais poderosa nação militar e econômica que emergia do pós-guerra. Para citar Fausto-Sterling “no pós-2ª Guerra, o ideal da vida familiar nos subúrbios [norte-americanos] foi estruturado estritamente no entorno da divisão de papéis de gênero”. A esse período, “ainda menos flexível” que o anterior, Fausto-Sterling denomina “era da conversão”, em que a perspectiva hormonal suprimiu a análise gonodal como fim em si mesma. De acordo com sua ratio, “era imperativo que médicos não deixassem ‘escapar’ pessoas que, no momento do nascimento, apresentassem o ‘sexo misturado’; através de quaisquer meios necessários, médicos deveriam convertê-las para ‘machos’ ou ‘fêmeas’”. Esse modelo já estava nocauteado com as descobertas dos cromossomos por Thomas Morgan em 1910. Essas duas décadas - que são elos de ligação - foram constituídas por vácuos de novas abordagens e tentativas de sintetizar a abordagem histológica com o conhecimento cromossômico. Os casos de PHM foram definidos como “ambiguidade genital em presença de um cariótipo 46, XY”, os de PHF como “ambiguidade genital em presença de um cariótipo 46, XX”, e para os diagnósticos de HV foi mantida a “anatomia gonadal”.

Foi a comprovação de que é possível a ocorrência em um só corpo humano de alguns elementos “típicos” de um e de outro sexo - e que isso, per se, não constitui um defeito (o que desestabiliza o sistema sexo-gênero binário e, por consequência, a matriz heterossexual) e autoriza a Biologia a afirmar que existe uma espécie de continuum entre machos e fêmeas que conduziu aos marcos na evolução do debate sobre a sexualidade humana: a distinção conceitual entre sexo e gênero (e suas sub-categorias: identidade de gênero e papel de gênero) pelo psicólogo e sexólogo John Money na Universidade Johns Hopkins. Essa distinção separou marcadores biológicos da esfera subjetiva, promovendo análises distintas para cada um desses objetos de estudo. O modelo de abordagem contemporânea Fausto-Sterling chama de "era da Ética".

O modelo de John Money partia da distinção entre sexo e gênero e sugeria que a espécie humana era envolta de uma "plasticidade de gênero". Dito de outro modo, acreditava Money que, em termos de desenvolvimento e fixação de uma dada identidade de gênero, as leis da Biologia seriam revogadas  quando lhe fosse oferecido um ambiente no qual o gênero cirurgicamente designado não fosse contrariado. Ou seja, tem-se a diametral rival do inatismo (nature), a escola de pesquisa comportamentista (nurture). Que pregava que o meio/ambiente era determinante e a Biologia era totalmente irrelevante no debate sobre o sexo e, especialmente, sobre o gênero. Mas, falaremos mais sobre isso adiante (na parte II do artigo). Também em 1948, Alfred Kinsey publicava seu estudo sobre a sexualidade masculina.

Em 2005, realizou-se na cidade de Chicago um fórum com especialistas representantes dos principais institutos de Pesquisa endocrinológica dos EUA e Europa. Esses especialistas elaboraram um documento denominado Consensus Statement on Management of Intersex Disorders, conhecido coloquialmente no meio acadêmico como Consenso de Chicago (CdC)". O documento consagra o protagonismo do sujeito como agente ativo na definição de seu próprio sexo e gênero e critica a era das gônodas dizendo:
"[...] o grupo que estabeleceu a proposta de consenso parte do princípio de que os cariótipos 46,XX e 46,XY são “códigos secretos” para os pacientes e para seus familiares, partiu de um pressuposto falso. Com o amplo acesso aos meios de comunicação e de informação, qualquer um passa a relacionar 46,XX como um cariótipo do sexo feminino e 46,XY, do sexo masculino, de forma que muitas das decisões a respeito do gênero de criação não serão condizentes com tal interpretação."

Avançando na linha temporal, desde a década de 70, Paula Machado de um lado descreve que a Medicina, em seu esforço para elucidar a “verdade” oculta quanto ao gênero de um determinado corpo, "cada vez mais recorre à sofisticada parafernália biotecnológica existente. Aparato esse que possibilita o exame de tecidos e órgãos em níveis moleculares, genéticos e cromossômicos." De outro lado, Anne Fausto-Sterling afirma que, "proporcionalmente ao refino investigativo da 'verdade' na definição de um ou de outro sexo, mais se revela a precariedade de sua exata distinção. De maneira resumida, uma espécie de continuum entre os gêneros parece impossibilitar a afirmação da existência de fronteiras rígidas e intransponíveis entre eles". Em termos biológicos, diz ela, "existem muitas gradações entre o ‘masculino’ e o ‘feminino’”.

Vilain, Harley e Achermann dizem que "É difícil para as crianças serem criadas em um gênero que simplesmente não lhes pertence". Na maioria dos países, é legalmente impossível ser qualquer outra coisa senão macho ou fêmea.

Julie Greenberg (specialist in legal issues relating to gender and sex at Thomas Jefferson School of Law in San Diego, California) questiona que "se os biólogos continuam a mostrar que o sexo é um espectro, a sociedade e o Estado terão que lidar com as conseqüências e descobrir onde e como desenhar certas linhas. A lei exige que uma pessoa seja macho ou fêmea, esse sexo deve ser atribuído por anatomia, hormônios, células ou cromossomos, e o que deveria ser feito se eles entrarem em conflito? (...)
Os biólogos podem estar construindo uma visão mais matizada do sexo, mas a sociedade ainda não conseguiu se adaptar. Muitas sociedades ficam confortáveis com homens e mulheres que cruzam fronteiras societárias convencionais em suas escolhas de aparência, carreira e parceiro sexual. Mas quando se trata de sexo, ainda existe uma pressão social intensa para se manter ao modelo binário. Esta pressão significa que as pessoas intersexuais muitas vezes são submetidas a uma cirurgia para 'normalizar' seus órgãos genitais. Essa cirurgia é controversa porque geralmente é realizada em bebês, que são muito jovens para consentimento e correm o risco de atribuir um sexo em desacordo com a identidade de gênero da criança. Os grupos de defesa intersexos argumentam, portanto, que os médicos e os pais devem aguardar até que uma criança tenha idade suficiente para comunicar sua identidade de gênero ou idade suficiente para decidir se eles querem alguma cirurgia."

Apesar disso, os debates de gênero avançam e ganham força no mundo inteiro. Nos EUA, um julgado que já é um marco na questão de sexo-gênero foi a lide colocada em foco por uma ação judicial realizada na Carolina do Sul em maio de 2013 por Mark e Pamela Crawford (pais adotivos de uma criança intersexual de atualmente 14 anos chamada M.C. Crawford). Como é intersex, o garoto morfologicamente possui caracteres físicos elementares de ambos os sexos. Sua mãe biológica foi considerada incapaz e seu pai o abandonou. Sob os cuidados de um orfanato na Carolina do Sul, uma equipe de médicos avaliou sua condição e decidiu que sua identidade de gênero era feminina, fizeram uma cirurgia de remoção em seu órgão sexual masculino aos 16 meses e, ao crescer, o menino (que fora adotado) deixou claro que sua identidade de gênero era masculina.

Seus pais adotivos processaram o Estado alegando violação à integridade corporal de natureza grave a partir de uma mutilação genital e uma escolha arbitrária de gênero. Ganharam a batalha judicial e M.C. recebeu indenização de US$ 500.000,00. "Tornou-se cada vez mais difícil, assim como sua identidade se tornou mais claramente masculina, a consciência de que ele foi vítima de uma mutilação tornou-se mais e mais real (...) chegou um momento em que ele não tolerou mais ser tratado como menina, então seu pediatra explicou que continuar forçá-lo a um gênero iria aprofundar seu quadro de disforia de gênero. Conversamos e decidimos permitir que ele fizesse a transição social na escola, na Igreja e com seus amigos. Todos apoiaram a sua identidade de gênero (...)", disse sua mãe em um vídeo. "Nós apenas deixamos que ele siga seus instintos tanto quanto podemos (...) Eu nunca teria tomado a decisão de escolher o gênero de qualquer maneira (...) O que eu estaria trabalhando é como preservar o funcionamento em qualquer direção, porque não podemos saber qual será a identidade de gênero dessa criança", seu pai completou. No processo, foram arrolados documentos que comprovavam despesas médicas, dor e sofrimento e danos psicológicos potencialmente permanentes em razão da mutilação sofrida.

"Uma vez que não há parâmetros biológicos predominantes, a identidade de gênero parece ser o mais razoável. Em outras palavras, se você quer saber se alguém é homem ou mulher, é melhor apenas perguntar" - Eric Vilain (Diretor do Gender Based-Biology, University of California Health - Los Angeles, CA)

E com esta citação abrimos a segunda parte deste assunto.

II/III - Identidade de Gênero:
Você deve ter reparado que eu evitei mencionar o lance da identidade de gênero e orientação sexual na breve análise da formação externa das genitálias. Isso porque eu agi coeteris paribus, com o intuito de fazer uma análise separada dessas outras duas vertentes importantes no processo de formação embrionário da sexualidade.

A palavra Gênero é utilizada pelo senso comum como sinônimo de Sexo. No contexto científico, contudo, o termo é utilizado como referente à identidade de um indivíduo solidificado a partir de sua genitália, sua estruturação cerebral e o papel que este desempenha na sociedade em que vive. Sendo mais específico, o objeto centralizador do gênero na Ciência são as diferenças sociais (conhecidas como papeis de gênero) que são um conjunto de comportamentos associados geralmente com masculinidade e feminilidade, em um grupo ou sistema social.

Só aparelhando as definições antes de prosseguirmos, a American Psychological Association (APA) – sobre os termos abaixo mencionados - diz:
“Alguns termos ou definições não são universalmente aceitos, e há desacordo entre profissionais e comunidades quanto às palavras ou definições "corretas", dependendo da região geográfica, geração ou cultura, com alguns termos vistos como afirmativos e outros como desatualizados ou degradantes.

A American Psychological Association (APA) Task Force for Guidelines for Psychological Practice with Transgender and Gender Nonconforming People desenvolveu as definições abaixo, revisando as definições existentes apresentadas por organizações profissionais (por exemplo, APA Task Force on Gender Identity and Gender Variance, 2009; the Institute of Medicine, 2011; and the World Professional Association for Transgender Health [Coleman et al., 2012]), agências de cuidados de saúde que atendem indivíduos TGNC (por exemplo, Fenway Health Center), recursos da comunidade TGNC (Gender Equity Resource Center, National Center for Transgender Equality), e literatura profissional. Os psicólogos são encorajados a atualizar regularmente seus conhecimentos e familiaridade com a evolução da terminologia à medida que as mudanças emergem na comunidade e/ou na literatura profissional. As definições abaixo incluem termos frequentemente usados nas Diretrizes, pelas Entidades, Autoridades Científicas em Saúde Mental e na literatura profissional”.

A American Psychiatric Association define gênero como "o papel público (e geralmente legalmente reconhecido) como menino ou menina, homem ou mulher. Fatores biológicos combinados com fatores sociais e psicológicos contribuem para o desenvolvimento de gênero.” A American Psychological Association (APA) complementa que refere-se a um padrão de aparência, personalidade, e comportamento que, em uma determinada cultura, está associado com ser um menino/homem/macho ou ser uma menina/mulher/fêmea. As características de aparência, personalidade e comportamento podem ou não estar em conformidade com o que se espera com base no sexo atribuído no nascimento da pessoa. O papel de gênero também pode se referir ao papel social que um indivíduo (por exemplo, como mulher, homem, ou outro gênero) exerce, com características de função conformes e outros que não estão de acordo com o que está associado à meninas/mulheres ou meninos/homens em um determinado tempo e cultura". "Gênderqueer, x-gender ou gênero não-binário (GNC): um adjetivo usado como um termo guarda-chuva para descrever pessoas cuja expressão de gênero ou identidade de gênero difere das normas de gênero associadas com o sexo atribuído no nascimento. Estes não se alinham com um entendimento binário de gênero (ou seja, uma pessoa que não se identifica totalmente como um homem ou uma mulher). Pessoas que se identificam como genderqueer podem redefinir gênero ou recusar-se a se definirem completamente em relação aos gêneros. Por exemplo, pessoas que identificam como o genderqueer podem pensar em si mesmos como homem e mulher (bigender, pangender, androgyne); nem homem, nem mulher (genderless, gênero neutro ou agênero); movendo-se entre os sexos (genderfluid); ou incorporando um terceiro gênero". Também definem Identidade de gênero como "uma categoria de identidade social e refere-se à identificação de um indivíduo como masculino, feminino ou, ocasionalmente, em uma categoria diferente do masculino ou feminino. É o senso básico de ser masculino, feminino ou de ambos e nem sempre corresponde ao sexo biológico." Cisgênero como um termo que "descreve indivíduos cuja identidade ou expressão de gênero alinha-se com o sexo atribuído a eles no nascimento." e Transgênero descreve "um adjetivo que é um termo guarda-chuva usado para descrever a gama completa de pessoas cujo papel de identidade de gênero e/ou gênero não está de acordo com o que é tipicamente associado ao sexo atribuído no nascimento. Apesar O termo "transgender" é comumente aceito, nem todas as pessoas TGNC se auto identificam como transgênero".

Em Answers to Your Questions About Transgender People, Gender Identity and Gender Expression, APA é taxativa:
“Qual a diferença entre sexo e gênero?
O sexo é atribuído ao nascimento e refere-se ao status biológico de ambos, seja masculino ou feminino, e está associado principalmente a atributos físicos, como cromossomos, prevalência hormonal e anatomia externa e interna. O gênero refere-se aos papéis, comportamentos, atividades e atributos construídos socialmente que uma determinada sociedade considera apropriada para meninos e homens ou meninas e mulheres. Estes influenciam as maneiras pelas quais as pessoas agem, interagem e sentem sobre si mesmas. Embora os aspectos do sexo biológico sejam semelhantes em diferentes culturas, os aspectos do gênero podem ser diferentes.

Várias condições que levam ao desenvolvimento atípico de características do sexo físico são coletivamente referidas como condições intersexuais. Para informações sobre pessoas com condições intersexuais (antigamente denominados hermafroditas), veja o paper da APA (American Psychological Association) Respostas às suas perguntas sobre indivíduos com condições de Intersex.

Sexo (sexo atribuído no nascimento): sexo geralmente é atribuído no nascimento (ou antes, no ultrassom) com base na aparência de genitália externa. Quando os genitais externos são ambíguos, outros indicadores (por exemplo, genitália interna, cromossômica e hormônios) são considerados como atributos do sexo, com o objetivo de atribuir um sexo que é mais provável que seja congruente com a identidade de gênero da criança (MacLaughlin & Donahoe, 2004). Para a maioria das pessoas, a identidade de gênero é congruente com sexo atribuído ao nascimento (ver cisgênero); para indivíduos TGNC, a identidade de gênero difere em graus variados de sexo atribuído no nascimento”.

O sexo é notado como diferente de gênero no Oxford English Dictionary, onde ele diz que sexo "tende agora a referir-se às diferenças biológicas". A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma igualmente que "'sexo refere-se às características biológicas e fisiológicas que definem homens e mulheres "e que "homem e mulher são categorias sexuais. Por sua vez, “gênero' refere-se aos papéis, comportamentos, atividades e atributos socialmente construídos que uma determinada sociedade considera apropriados para homens e mulheres" e que 'masculino' e 'feminino' são categorias de gênero.”

Com relação à formação da identidade de gênero, só lembrando que identidade de gênero é a forma como o próprio indivíduo se vê e se percebe, como foi dito, nas dez primeiras semanas de gestação, desenvolve-se a genitália. Em 1981, descobriu-se que o testículo começa a secretar a testosterona por volta da oitava semana de gestação. Os falos e avulvas são formados na nona e décima quinta semanas. Sabe-se que a testosterona também está presente em quantidades consideráveis nos fenótipos XX. Essa testosterona advém da placenta e da adrenal fetal.

Rossmanith and Swartz descobriram que as maiores diferenças na produção de testosterona nos fetos ocorre entre a décima primeira a décima sétima semanas, com picos recordes de testosterona no embrião XY ocorrendo no período de 17-21 semanas, embora os níveis de testosterona dos dois fenótipos se entrecruzem ao longo da vida. Assim, o Paradigma de Jost perdeu fôlego porque está bem claro para a Endrocrinologia contemporânea que outros fatores muito mais complexos interagem entre si, que não a mera taxa hormonal, simplesmente. Mas só da vigésima semana de gestação adiante desenvolvem-se os circuitos cerebrais que, como veremos, estão associados à identidade de gênero. O desenvolvimento da genitália de qualquer organismo com genoma humano, independentemente de haver cromossomo Y ou não, seguirá para o surgimento da vagina na ausência de hormônios masculinizantes.

Existem pessoas XY que se desenvolvem com insensibilidade a androgênios – são mulheres com vagina, em sua maioria heterossexuais. Isso fica difícil de conciliar com o dogma de que Deus criou primeiro o homem e depois modificou-o em mulher (como acreditava Tomás de Aquino que defendia que mulheres eram formas degeneradas de homem), quando nos detalhes genéticos do desenvolvimento embrionário são estruturas mais tipicamente femininas que servem como substrato para o desenvolvimento de estruturas mais tipicamente masculinas, quando hormônios e fatores de transcrição acionam cascatas bioquímicas de desenvolvimento.

Em famoso estudo de Dick Swaab, neurobiologista e professor na Universidade de Amsterdã, diretor do Instituto Holandês de Pesquisa do Cérebro (Nederlands Instituut voor Hersenonderzoek) da Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences (Koninklijke Nederlandse Akademie van Wetenschappen) é dito que existe uma independência temporal entre desenvolvimento do sexo biológico genital e desenvolvimento de estruturas associadas a diferentes gêneros no cérebro, de maneira que é natural, possível e sempre acontecerá numa minoria da humanidade que o sexo biológico se desenvolva de uma forma e o “sexo cerebral” se desenvolva de outra e que, portanto, a também importante contribuição do ambiente cultural atuará sobre cérebros já mais propensos a aceitar uma categoria ou outra. Assim, a formatação do cérebro desse indivíduo em cujos codificadores embrionários agiram para desenvolver sua genitália externa, também sofrerão essas mesmas intervenções no sentido de formatar sua estruturação cerebral.

Então, analisaremos pela mesma barrinha em que nos extremos temos aquilo que chamamos de cisgênero (quando a identidade de gênero do indivíduo corresponde totalmente ao seu sexo biológico), ou seja, em zero, teríamos um cérebro 100% feminino e em 100, teríamos um cérebro 100% masculino. É importante lembrar que essas diferenças vão aparecer com mais intensidade na puberdade que é quando a ebulição hormonal está em fase latente, embora casos de pessoas transgênero na pré-infância sejam recorrentes, inclusive em famílias cristãs ou islâmicas, que só aumentam o sofrimento da família e de seus filhos transexuais ao tentar modificar uma característica cujo controle não se encontra em suas mãos ou em uma “escolha”, já que a identidade de gênero começou a se formar no próprio útero. No cinquenta, voltando à barrinha, entre os cisgêneros, teríamos os "trangêneros irrestritos", que chamamos de transexuais.

Segundo o American Psychiatric Association:
“O que é a disforia de gênero?
A disforia de gênero é um conflito entre o sexo físico ou designado de uma pessoa e o gênero com o qual ele/ela se identifica. As pessoas com disforia de gênero podem estar muito desconfortáveis com o gênero que lhes foi atribuído, às vezes são descritos como estando desconfortáveis com seu corpo (particularmente desenvolvimentos durante a puberdade) ou desconfortáveis com os papéis esperados do gênero atribuído.
(...)
A disforia de gênero não é a mesma que gênero não-binário, que se refere a comportamentos que não correspondem às normas de gênero ou estereótipos do gênero atribuído no nascimento. Exemplos de não-binarismo de gênero incluem meninas que se comportam e se vestem de maneiras mais esperadas socialmente de meninos ou vestimentas ocasionais de homens adultos. A não-conformidade de gênero não é uma desordem mental. A disforia de gênero também não é o mesmo que gay/lésbica.

Enquanto algumas crianças expressam sentimentos e comportamentos relacionados à disforia de gênero aos 4 anos ou menos, muitos podem não expressar sentimentos e comportamentos até a puberdade ou até mais tarde. Para algumas crianças, quando elas experimentam a puberdade, de repente eles se encontram incapazes de se identificar com seu próprio corpo. Alguns adolescentes tornam-se incapazes de tomar banho ou usar um maiô e/ou praticam comportamentos de auto-mutilação”. (...) “Em 2013, a quinta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais (DSM-5, American Psychiatric Association, 2013) adotou o termo "disforia de gênero" como um diagnóstico caracterizado por "uma incongruência marcada entre" o gênero de uma pessoa atribuído no nascimento e a identidade de gênero (American Psychiatric Association, 2013, p. 453). A disforia de gênero substituiu o diagnóstico de transtorno de identidade de gênero (GID) na versão anterior do DSM (American Psychiatric Association, 2000)”.

No mesmo sentido, o Royal College of Psychiatrists Britânico em conjunto com UK Council for Psychotherapy, Royal College of Physicians, British Psychological Society, Royal College of Paediatrics and Child Health, British Association of Urological Surgeons, Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Speech and Language Therapists, Royal College of General Practitioners, Royal College of Surgeons e outros publicaram o Good practice guidelines for the assessment and treatment of adults with gender dysphoria:
"A expressão de características de gênero que não são associadas a esteriótipos de gênero atribuído no nascimento é um fenômeno humano natural e comum, registrado em diferentes povos e culturas e não deve ser julgado como inerentemente patológico ou negativo.

A disforia pode estar associada ao preconceito, causando problemas psicológicos e angústia. Esse sofrimento não é inerente ao transexual, transgênero ou não-binário. A disforia de gênero é o sofrimento associado à experiência da identidade de gênero pessoal de alguém e é inconsistente com o fenótipo ou o papel de gênero tipicamente associado a esse fenótipo.

Essa angústia, quando presente, pode motivar o indivíduo que busca consulta clínica. Há gradações da experiência de gênero entre o "homem" ou a "mulher". Alguns podem sentir desconforto e precisar de intervenção médica; outros podem precisar de pouca ou nenhuma.
Autodescrições incluem: pangender, polygender, neutrois e genderqueer”.

American Psychological Association define:
“O que é um transgênero?
Transgênero é um termo global para pessoas cuja identidade de gênero, expressão de gênero ou comportamento não está em conformidade com o que normalmente é associado com o sexo com o qual nasceram. Identidade de gênero refere-se ao senso interno de uma pessoa de ser masculino, feminino ou outra coisa; a expressão de gênero refere-se à forma como uma pessoa comunica a identidade de gênero para outras pessoas através do comportamento, roupas, penteados, voz ou características do corpo. "Trans" às vezes é usado como estenografia para "transgênero". Enquanto o transgênero é geralmente um bom termo para usar, nem todos, cuja aparência ou comportamento não estão conforme o gênero, serão identificados como pessoas transgêneros. As formas em que as pessoas transgênero são retratadas na cultura popular, academia e ciência estiveram em constante mudança, particularmente à medida em que a consciência, conhecimento e abertura dos indivíduos sobre as pessoas transgêneros e suas experiências cresceram. Transexual: termo usado para descrever as pessoas TGNC que mudaram ou estão mudando seus corpos através de intervenções medicamentosas (por exemplo, hormônios, cirurgia)”.

E, óbvio que se descobrir num mundo em que se possui uma identidade de gênero x, sendo que você está enclausurado num corpo y é fonte de grande tormento psíquico (tormento infinitamente maior do que o experimentado por um homossexual). Os índices de suicídio entre transexuais é enorme, transexuais também tendem a pender pra drogas e comportamentos autodestrutivos, mutilações, e as mutilações sinistras em transexuais eram constantes, motivo pelo qual o SUS resolveu custear as cirurgias de mudança de sexo. “Transfobia, Antitrans prejudice, transprejudice ou transnegativity: atitudes prejudiciais que podem resultar na desvalorização, antipatia e ódio de pessoas cuja identidade de gênero e/ou expressão de gênero não estão em conformidade com seu sexo atribuído no nascimento. A transfobia pode levar a comportamentos discriminatórios em áreas como emprego e acomodações públicas, e pode levar a assédio e violência. Quando as pessoas TGNC mantêm essas atitudes negativas sobre si mesmas e sua identidade de gênero, ela é portadora de transfobia internalizada (uma construção análoga à homofobia internalizada). Transmisoginia descreve uma experiência simultânea de sexismo e transfobia com efeitos particularmente adversos para as mulheres trans”.

A American Medical Association protocolou o apoio à várias ações para "ampliação de como a identidade de gênero é definida na medicina e como os pacientes transexuais são tratados pela sociedade." Defendendo ampla gama de direitos para a população transexual, inclusive de prisioneiros transgêneros.
"Instruiu os médicos a 'trabalhar com outras organizações apropriadas para informar e educar a comunidade médica e o público sobre o espectro médico da identidade de gênero'. A resolução explica que o gênero "não é completamente entendido como uma seleção binária porque gênero, identidade de gênero, orientação sexual e sexo genotípico e fenotípico nem sempre estão alinhados". Adotou políticas que se opõem a quaisquer esforços que impeçam uma pessoa transgênero de acessar serviços humanos básicos e instalações públicas de acordo com a identidade de gênero. Os transexuais que vivem em estados com políticas discriminatórias têm aumentos estatisticamente significativos em saúde mental e psiquiátrica. diagnósticos, de acordo com os delegados de resolução adotados.

O preconceito e a discriminação afetam os indivíduos transgêneros de várias maneiras ao longo de sua vida cotidiana, geralmente na forma de abuso físico ou verbal ou bullying.

Leis e políticas que restringem o uso de instalações públicas baseadas em gênero biológico podem ter conseqüências físicas imediatas e persistentes, bem como repercussões severas de saúde mental. Para proteger a saúde pública e promover igualdade social e acesso seguro a instalações e serviços públicos, a Associação Médica Americana opõe-se a políticas que impeçam indivíduos transexuais de acessar serviços humanos básicos e instalações públicas de acordo com sua identidade de gênero".

Também, entre o zero, cinquenta e o cem, teríamos os mais diferentes casos, por exemplo, os travestis, trangêneros, etc, etc, etc...

A correlação entre hormônio masculino e a diferenciação e desenvolvimento cerebral e comportamento masculino e feminino é uma linha de pesquisa frequente nas Academias nos últimos anos.

Na década de 1970, Dörner realizou experimentos com animais com base no fato de que a diferenciação sexual perinatal das áreas neuroendócrinas do sistema nervoso central é regulada pelo hormônio luteinizante (LH). Utilizando este hormônio como marcador biológico, ele observou que ratos machos tinham o comportamento sexual revertido quando o sistema hormonal masculino era danificado. Em 1996, cientistas descobriram que jacarés machos do lago Apopka na Flórida expostos a um estrógeno do esgoto, o DDE, estavam apresentando anormalidades no pênis, que estavam diminuindo de tamanho e atrofiando e concentrações anormais de hormônios sexuais no plasma (baixa concentração de testosterona). Esses jacarés passavam a se comportar em natureza como se fossem fêmeas. Resultados similares foram observados com as tartarugas no lago, em peixes no Reino Unido e nos Grandes Lagos e em ratas grávidas expostas a Dietilestilbestrol (DES).
Um achado endocrinológico que precisa ser confirmado é uma forma atípica de hiperplasia adrenal em transexuais femininas. Já em 2002, um estudo comparativo com gêmeos relacionando a disforia de gênero com a hereditariedade (62%) e apontando para influências genéticas no desenvolvimento pré-natal foi bastante referendado.

Rahman e Wilson encontram em homossexuais evidências de que a influência de hormônios sexuais afetam a orientação sexual e o demonstram pela análise da relação de tamanho entre o segundo e o quarto dedo da mão. Mulheres lésbicas e homens "machões" tem uma diferença no comprimento dos dedos indicador e anular - que demonstra a exposição pré-natal à testosterona (ou seja, ação de altas doses de andrógenos intra-útero). Em lésbicas "femininas" esta diferença é muito menor. Apesar de relacionado à orientação sexual, essa influência genética também pode ter relação com a formação da identidade de gênero em seres humanos. Numerosos outros estudos associam diferentes graus de hermafroditismo à disparidades hormonais, em especial em 5alpha-RD-2 e 17beta-HSD-3.

Um estudo realizado por Milton Diamond, professor emérito de Biologia Reprodutiva da Universidade do Havaí, em Manoa, comparou gêmeos idênticos e não-idênticos. Quando um gêmeo idêntico era transsexual, em 30% dos casos o outro também era; já entre os não-idênticos, que possuem genomas diferentes, não havia correlação aparente, o que implica na conclusão de que a presença do mesmo genoma aumenta significativamente a coincidência da transexualidade.

No maior estudo genético já realizado sobre transexualidade, pesquisadores do Prince Henry’s Institute of Medical Research reforçaram a hipótese de influência genética para a transexualidade. Ainda mais notável, no resultado do estudo, foi a presença de receptores hormonais diferentes no cérebro de transexuais. O corpo de transgêneros e cisgêneros processam a testosterona, por exemplo, de modo distinto.

Há também pesquisas importantes para a ressignificação da transexualidade. No campo da endocrinologia, durante os anos 1920-1930 chegou-se à identificação química dos hormônios sexuais e à comprovação de que "homens e mulheres têm tanto hormônios masculinos como femininos e que estes últimos podem apresentar, em certas condições, efeitos “masculinizantes” e vice-versa".

Estudo mais recente, utilizando 42 cérebros de pacientes chegou à conclusão de que o número de neurônios no "bed nucleus da stria terminalis" de transexuais masculinos é similar ao das mulheres e, em contraste, o número de neurônios de uma transexual feminina é equivalente ao de um homem. Os autores concluem que, em transexuais, a diferenciação do cérebro e dos genitais ocorre em direções opostas e indica a base neurobiológica do transtorno de identidade de gênero.

Dick Swaab demonstrou que a diferenciação do hipotálamo ocorre aproximadamente por volta dos quatro anos de idade e depende de fatores genéticos e níveis de hormônios pré-natais. A mesma relação entre comportamento masculino e andrógenos é estabelecida por Gooren e Kruijiver.

Um estudo que verificou exames de ressonância magnética que analisava a reação de adolescentes transgêneros a um esteroide conhecido por gerar reações diversas em cérebros de homens e mulheres. Os cérebros dos adolescentes reagiam de forma mais parecida com o do gênero com que se identificavam do que com o do sexo com o qual nasceram. Outros estudos reforçaram esses resultados.

O entendimento do American Psychiatric Association:
“Por que algumas pessoas são transgêneros?
Não há uma explicação única para explicar porquê algumas pessoas são transgêneros. A diversidade de expressão e experiências de transgêneros argumenta contra qualquer explicação simples ou unitária. Muitos especialistas referendados mostraram que fatores biológicos, como influências genéticas e níveis hormonais pré-natais, experiências iniciais e experiências mais tarde, na adolescência, ou na idade adulta podem contribuir para o desenvolvimento de identidades transgêneros.

A transexualidade é transtorno mental?
Um estado psicológico é considerado um transtorno mental somente se causar sofrimento ou deficiência significativa. Muitas pessoas transgêneros não experimentam seu gênero como angustiante ou incapacitantes, o que implica que a identificação como transgênero não constitui uma desordem mental. Para esses indivíduos, o problema significativo é encontrar recursos acessíveis, como aconselhamento, terapia hormonal, procedimentos médicos e o suporte social necessário para expressar livremente sua identidade de gênero e minimizar a discriminação. Muitos outros obstáculos podem levar à angústia, incluindo a falta de aceitação na sociedade, experiências diretas ou indiretas com discriminação ou agressão sexual. Essas experiências podem levar muitas pessoas transgênero a sofrer com ansiedade, depressão ou distúrbios relacionados à taxas mais elevadas que cisgêneros.

De acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais (DSM-5), pessoas que experimentam incongruência de gênero intensa e persistente podem receber o diagnóstico de "disforia de gênero". Alguns afirmam que o diagnóstico patologiza inadequadamente o não-conflito de gênero e deve ser eliminado. Outros argumentam que é essencial manter o diagnóstico para garantir o acesso aos cuidados. A Classificação Internacional de Doenças (CID) está em revisão e pode haver mudanças na sua classificação atual de intensa incongruência persistente de gênero como "transtorno de identidade de gênero".

As Diretrizes que norteiam o proceder dos psicólogos no mundo inteiro foram protolocadas pela APA em 2015:
“Diretriz 1.
Os psicólogos entendem que o gênero é uma construção não-binária que permite uma variedade de identidades de gênero e a identidade de gênero de uma pessoa pode não se aliar com sexo atribuído no nascimento.

Fundamentação.
A identidade de gênero é definida como um sentimento profundo, sentimento inerente de ser uma menina, mulher ou fêmea; um menino, um homem ou um macho; uma mistura de homens ou mulheres ou um gênero alternativo (Bethea & McCollum, 2013; Instituto de Medicina [IOM], 2011). Em muitas culturas e tradições religiosas, gênero tem sido percebido como uma construção binária, com categorias mutuamente exclusivas de feminino e masculino, menino ou menina, homem ou mulher (Benjamin, 1966; Mollenkott, 2001; Tanis, 2003). Estas categorias mutuamente exclusivas incluem uma suposição de que a identidade de gênero estaria sempre em alinhamento com o sexo atribuído no nascimento (Bethea & McCollum, 2013). Para as pessoas TGNC (Transgender and gender nonconforming), a identidade de gênero difere do sexo atribuído ao nascimento em graus variados, e pode ser experimentado e expresso fora do binarismo de gênero (Harrison, Grant & Herman, 2012; Kuper, Nussbaum, & Mustanski, 2012).

O gênero como construção não-binária foi descrito e estudado por décadas (Benjamin, 1966; Herdt, 1994; Kulick, 1998). Há evidências históricas de reconhecimento, aceitação societária, e às vezes reverência de diversidade em identidade de gênero e expressão de gênero em várias culturas (Coleman et al., 1992; Feinberg, 1996; Miller & Nichols, 2012; Schmidt, 2003). Muitas culturas que davam visibilidade às pessoas e grupos não sujeitas aos padrões de gênero, tal visibilidade foi diminuída pela ocidentalização, colonialismo e sistema desigualdade (Nanda, 1999). No século XX, A expressão TGNC tornou-se medicalizada (Hirschfeld, 1910/1991), e intervenções médicas para tratar a discordância entre um sexo da pessoa atribuído ao nascimento, características sexuais secundárias e a identidade de gênero foram utilizados (Meyerowitz, 2002).

Já na década de 1950, pesquisas encontraram variabilidade em como indivíduos descreveram seus gêneros, com participantes relatando uma identidade de gênero diferente de categorias culturalmente definidas, mutuamente exclusivas de "homem" ou "mulher" (Benjamin, 1966). Em vários grandes recentes estudos on-line da população TGNC nos Estados Unidos, 30% a 40% dos participantes identificaram sua identidade de gênero como homem ou mulher (Harrison et al., 2012; Kuper et al., 2012). Embora algumas investidas da Psicologia tenham cultivado uma compreensão mais ampla do gênero, a maioria exigiu uma escolha forçada entre homem e mulher, deixando de representar aqueles com diferentes identidades de gênero ((Conron, Scout, & Austin, 2008, IOM, 2011). Pesquisas ao longo das duas últimas décadas demonstraram a existência de um amplo espectro de identidade de gênero e expressões de gênero (Bockting, 2008; Harrison et al., 2012; Kuper et al., 2012), que inclui pessoas que se identificam como homem ou mulher, nem homem, nem mulher, uma mistura de homem e mulher, ou uma identidade de gênero única. Identificação de uma pessoa como TGNC pode ser saudável e auto afirmativa, e não é inerentemente patológica. Contudo, as pessoas podem ser portadoras de sofrimento associado à discordância entre sua identidade de gênero e seu corpo ou sexo atribuído no nascimento, bem como estigma social e discriminação (Coleman et al., 2012).

Entre o final da década de 1960 e o início da década de 1990, o cuidado com a saúde visando aliviar a disforia de gênero reforçou em grande parte uma conceituação binária de gênero (APA TFGIGV, 2009; Bolin, 1994; Hastings, 1974). Naquele momento, foi considerado como resultado ideal que as pessoas da TGNC se conformassem a uma identidade alinhada com qualquer sexo atribuído no nascimento ou, se não fosse possível, com o sexo "oposto", com uma forte ênfase na integração com a população cisgênero (APA TFGIGV, 2009; Bolin, 1994; Hastings, 1974). Variância dessas opções poderiam suscitar preocupação com os cuidados de saúde sobre a capacidade de uma pessoa TGNC para a transição com sucesso.

Essas questões foram uma barreira ao acesso à cirurgia ou terapia hormonal, porque médica e mentalmente, o endosso do profissional de saúde era necessário antes da cirurgia para que os hormônios pudessem ser acessados (Berger et al., 1979). Atualmente, contudo, vigora o reconhecimento de um espectro de diversidades de gênero (Bockting et al., 2006; Coleman et al.),

Aplicação.
Uma compreensão não-binária do gênero é fundamental para a prestação de cuidados afirmativos para pessoas TGNC. Os psicólogos são encorajados a se adaptar ou modificar a compreensão do gênero, ampliar o alcance de variação considerada saudável e normativa. Ao entender o espectro das identidades de gênero e as expressões de gênero que existem, e que a identidade de gênero de uma pessoa talvez não esteja em alinhamento total com sexo atribuído no nascimento, psicólogos podem aumentar sua capacidade para ajudar as pessoas da TGNC, suas famílias e suas comunidades (Lev, 2004).

Respeitar e apoiar as pessoas TGNC autenticamente articulando sua identidade de gênero e expressão de gênero, bem como sua experiência vivida, pode melhorar a saúde, o bem-estar e a qualidade de vida de pessoas TGNC (Witten, 2003).

Algumas pessoas TGNC podem ter acesso limitado à visibilidade, ou modelos TGNC sociais positivos. Como resultado, muitas pessoas TGNC ficam isoladas e devem lidar com o estigma do gênero sem orientação ou suporte, agravando o efeito negativo do estigma na saúde mental (FredriksenGoldsen et al., 2014; Singh, Hays, & Watson, 2011).

Psicólogos podem ajudar as pessoas TGNC orientando a exploração de seu gênero, mesmo que esse desafie normas e estereótipos. Pessoas TGNC, parceiros, famílias, amigos e comunidades podem se beneficiar da educação sobre a variação da identidade de gênero e expressão de gênero, e a suposição incorreta de que a identidade de gênero se alinha automaticamente com o sexo atribuído no nascimento.
(...)

Diretriz 3.
Os psicólogos procuram compreender como a identidade de gênero cruza com as outras identidades culturais das pessoas TGNC.

Fundamentação.
Identidade de gênero e expressão de gênero podem ter interseções profundas com outros aspectos da identidade (Collins, 2000; Warner, 2008). Esses aspectos podem incluir - mas não estão limitados a - raça / etnia, idade, educação, status socioeconômico, status de imigração, ocupação, status de deficiência, status de HIV, orientação sexual, status de relacionamentos e religião e/ou afiliação espiritual. Enquanto que alguns desses aspectos da identidade podem dar privilégio, outros podem criar estigmas e impedir o empoderamento (Burnes & Chen, 2012; K. M. de Vries, 2015). Além disso, pessoas TGNC que transicionam podem não estar preparadas para mudanças ou tratamento social baseado na identidade de gênero e expressão de gênero. Para ilustrar, um trans americano afro-americano - o homem pode ganhar status masculino, mas pode enfrentar o racismo e o estigma da sociedade em particular para os homens afro-americanos. A mulher asiática/Pacific Islander pode experimentar o benefício de ser percebida como uma mulher, mas também pode experimentar o sexismo, misoginia e objetivação.

A interseção de múltiplas identidades na vida das pessoas TGNC é complexa e pode obstruir ou facilitar o acesso ao apoio necessário (A. Daley, Salomão, Newman & Mishna, 2008). Pessoas TGNC com menos privilégios e/ou múltiplas identidades oprimidas podem sofrer um maior estresse e acesso restrito aos recursos. Eles também podem desenvolver resiliência e força para lidar com desvantagens ou podem localizar recursos baseados em comunidades disponíveis para grupos (por exemplo, para pessoas que vivem com HIV; Singh et al., 2011). A afirmação de identidade de gênero pode entrar em conflito com crenças religiosas ou tradições (Bockting & Cesaretti, 2001).

Encontrar uma expressão afirmativa de suas religiões e crenças e tradições espirituais, incluindo relações positivas com líderes religiosos, pode ser um recurso importante para pessoas TGNC (Glaser, 2008; Porter, Ronneberg, & Witten, 2013; Xavier, 2000).

Aplicação.
Na prática, os psicólogos se esforçam para reconhecer as múltiplas identidades de pessoas TGNC que influenciam o enfrentamento, a discriminação e resiliência (Burnes & Chen, 2012). Uma melhor relação e uma aliança terapêutica é provável que se desenvolva quando os psicólogos evitam enfatizar demais a identidade de gênero e a expressão de gênero quando não é diretamente relevante para as pessoas TGNC. Mesmo quando a identidade de gênero é o principal foco de atenção, os psicólogos são encorajados a entender que a experiência de gênero de uma pessoa TGNC também pode ser moldada por outros aspectos importantes da identidade (por exemplo, idade, raça/etnia, orientação sexual), e que a relevância de diferentes aspectos da identidade podem evoluir como a pessoa continua o desenvolvimento psicossocial em toda a vida, independentemente de completarem um processo médico ou social transição.

Às vezes, a interseção das identidades de uma pessoa TGNC podem resultar em conflito, como a luta de uma pessoa para integrar a identidade de gênero com educação religiosa e/ou espiritual e crenças (Kidd & Witten, 2008; Levy & Lo, 2013; Rodriguez & Follins, 2012). Os psicólogos podem ajudar pessoas TGNC na compreensão e integração de identidades que podem ser vivenciada de formas diferentes nos sistemas de poder e desigualdade sistêmica (Burnes & Chen, 2012). Psicólogos também podem destacar e fortalecer o desenvolvimento de Competências e resiliência das pessoas TGNC à medida que aprendem a gerenciar a interseção de identidades estigmatizadas (Singh, 2012).

Em agosto de 2017, um Consórcio de Cinco Instituições de Pesquisa na Europa e nos Estados Unidos - incluindo o Centro Médico da Universidade de Vanderbilt, a Universidade George Washington e o Hospital Infantil de Boston - anunciaram um grande estudo intercontinental sobre identidade de gênero abordando uma explanação do genoma humano através da coleta de amostras de DNA de 10.000 indivíduos no que promete ser um dos grandes estudos sobre o tema, ainda não há previsibilidade de publicação dos resultados, então, aguardemos.

Nas Ciências Sociais, as pesquisas de gênero também são extensas. Situando historicamente, a sociedade medieval começou a ruir dos eventos que culminaram na Revolução Francesa e a sociedade estamentada passou a ser questionada em diferentes níveis. A Revolução Industrial modificou o cenário feudal com papeis de gênero muito definidos e as mulheres saíram de suas casas para assumir o protagonismo de trabalhar e de serem sujeitas ativas na Economia das Indústrias. No século XIX-XX, as mulheres de classe alta e média-alta na Inglaterra e EUA criaram o Movimento Feminista exigindo direito ao voto e alguns direitos sociais de autonomia, como o de poderem andar nas ruas, viajar, estudar ou trabalhar sem a necessidade de autorização expressa do homem que lhes governava. Essa novidade histórica constituiu objeto de estudo de inúmeros pensadores da sociedade, redirecionando atenção e protagonismo dos papeis de gênero nas relações sociais da humanidade.

 Na Antropologia clássica a distinção de gênero é recorrente no estudo da organização social e do parentesco. Para Lewis Henry Morgan, antropólogo clássico do evolucionismo, a descendência pela linha feminina só é possível em sociedades "menos avançadas", sendo a passagem da descendência para a linha paterna o que marcaria a passagem à civilização e emergência de uma nova ordem social. Já na tradição estruturalista, Lévi-Strauss percebe que a troca de mulheres através do casamento representa uma forma básica de garantir a aliança entre os grupos de parentesco e constituir, assim, a sociedade. A crítica feminista pontua que, assim como Morgan e Lévi-Strauss, a maior parte dos antropólogos clássicos observou e descreveu cuidadosamente o comportamento dos homens e das mulheres nas diversas esferas de atividade, seus desempenhos no ritual e sua presença no imaginário mítico. No entanto, essa descrição etnográfica é marcada pelo etnocentrismo, inclusive na abordagem das distinções de gênero e das relações entre homens e mulheres.

Três teóricos clássicos são considerados pioneiros das temáticas de gênero: Bronislaw Malinowski, Gregory Bateson e Margaret Mead.

Em A vida sexual dos selvagens, Malinowski abordou a questão da sexualidade, tratando-a como uma força sociológica e cultural que fundamenta o amor, o namoro, o casamento e a família, incorporando então, ao tema, as relações de gênero.

Bateson ao descrever o naven, cerimônia do povo Iatmul, da Nova Guiné, examina a construção simbólica da feminilidade e da masculinidade deste povo: homens vestem-se de mulheres e vice-versa. Essa conduta está relacionada à estrutura e ao ethos da cultura Iatmul. Mas essa considerável diferenciação na conduta de homens e mulheres e na construção simbólica seria algo "típico" das sociedades simples.

Margaret Mead, em Coming of age in Samoa, publicado em 1928, através do relato etnográfico sobre um povo diferente, faz a crítica da moralidade do povo dos Estados Unidos. Em Samoa, a passagem da infância para a adolescência era um processo suave, sem a ansiedade que essa passagem gerava nos adolescentes americanos. Mead observou que "as jovens mulheres samoanas adiavam o casamento por muitos anos, enquanto desfrutavam do sexo ocasional, mas que, uma vez casadas, 'assentavam' e criavam com êxito os próprios filhos".

Já em Sexo e Temperamento, etnografia de 1935, Mead aborda o comportamento como uma variável que não pode ser analisada sem levar a cultura em consideração, e que também não é algo determinado de forma fixa por aspectos fisiológicos ligados ao sexo. A etnografia foi feita junto a três tribos da Nova Guiné: os Arapesh das montanhas, os Mundugumor habitantes do rio, e os Tchambuli habitantes do lago. Essas tribos possuíam culturas relativamente simples e homogêneas, que enfatizavam certos comportamentos/e temperamentos, enquanto outros eram desaprovados e até mesmo punidos. Mead procurou mostrar, através do contraste com outras culturas, como cada um de nós pertence a um sexo e tem um temperamento que é compartilhado com outros de nosso sexo e do sexo oposto. Os temperamentos que reputamos naturais em um sexo seriam meras variações do temperamento humano às quais os membros de um ou ambos os sexos podem ser, com maior ou menor sucesso, aproximados através da educação.

O livro O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir (1949) abriu, através da Filosofia e Literatura, um debate político mais aprofundado, ao contestar o determinismo biológico e/ou desígnio divino, retomando a perspectiva hegeliana de que ser é tornar-se, resultando na ideia de que não se nasce mulher, mas se torna mulher. Ao distinguir o componente social do sexo feminino do seu aspecto biológico, Lucila Scavone destaca em Gender studies: a feminist Sociology? que "essa constatação lançou a primeira semente para os estudos de gênero, já que ela distingue o componente social do sexo feminino de seu aspecto biológico, ainda sem conceituar ‘gênero’”.

Posteriormente aos estudos do sexologista e psicólogo John Money – sobre o qual já falaremos – o psicólogo norte-americano Robert Stoller diferenciou conceitualmente sexo e gênero em Sex and Gender: On the Development of Masculinity and Femininity, segundo ele "sexo refere-se aos aspectos anatômicos, morfológicos e fisiológicos (genitália, gônadas, cromossomos sexuais, hormônios) da espécie humana". Ou seja, a categoria sexo é definida por aspectos biológicos: quando falamos em sexo, estamos nos referindo a sexo feminino e sexo masculino, ou à fêmeas e machos. Já o conceito de gênero remete aos significados sociais, culturais e históricos associados aos sexos. Janete Sa em Masculine/Feminine or Human? usa “gênero inato” e “papéis sexuais aprendidos” e na edição posterior do mesmo livro, o uso de sexo e gênero é invertido. A partir de então, a maioria dos escritores passaram a concordar no uso da expressão gênero para aspectos socioculturais adaptados tanto no meio acadêmico, como nas teorias do psicanalista Jacques Lacan, como nos trabalhos de feministas como Olympe de Gouges, Jeanne Deroin, Simone de Beauvoir, Monique Wittig, Daniele Kergoat, Júlia Kristeva, Jane Flax, Carole Pateman, Nancy Fraser, Joan Scott, Gayle Rubin, Christine Delphy e Judith Butler.

Esta última, Judith Butler, filósofa pós-estruturalista e feminista, distingue o componente social do sexo feminino e a sua base biológica. Ela analisa, de maneira crítica, a dicotomia entre sexo e gênero, sendo que, para ela, os corpos sexuados podem ser base para uma variedade de gêneros e que o gênero não se limita apenas às duas possibilidades usuais.

Joan Roughgarden em Evolução do Gênero e da Sexualidade analisa diversas sociedades em diferentes épocas e esboça que muitas sociedades reconhecem apenas dois papéis de gênero - masculino ou feminino — e estes correspondem ao sexo biológico. Antes da colonização e no elo de ligação com a chegada dos europeus, contudo, nos territórios que hoje correspondem aos EUA e ao Canadá, um grande número de tribos esparsas possuía um costume em comum: eram adoradores de travestis.

Essas pessoas que ultrapassavam as barreiras de gênero receberam nomes variados. Entre o território mexicano e o chileno, eram chamados de berdaches e nos Estados Unidos eram chamados de Two-spirit. A ideia de culto a esses indivíduos advinha da crença nativa de que pelo fato de nascerem compelidos a transitar entre os dois gêneros, eles conseguiam absorver a força e as habilidades do masculino e do feminino simultaneamente - ou seja, recebiam "dois espíritos" em um único corpo.

Assim, o travesti ou x-gender mais sábio era elevado ao posto de "xamã" e comandava espiritualmente toda a tribo.

Quando os europeus chegaram ao Novo Mundo e descobriram que os pais educavam as crianças para ver o gênero como fluido, a sexualidade como natural e que quando crescessem poderiam casar com homens ou mulheres, ficaram horrorizados com tamanha abominação e este foi (junto com a infidelidade dos ex-maias) o principal motivo para a abertura da Inquisição de Landa em Maní (a mais cruel das Inquisições). As tribos berdaches foram totalmente erradicadas, mas os two-spirit existem até hoje. Outras sociedades incluem papéis bem desenvolvidos que são explicitamente considerados distintos dos arquétipos masculinos e femininos. Na linguagem da Sociologia aplicada ao gênero, há a inclusão de um terceiro gênero, um tanto distinto do sexo biológico (algumas vezes a base para os papéis de gênero incluem a intersexualidade ou incorpora eunucos). Um exemplo é o papel de gênero adotado pelas Hijras da Índia e Paquistão. O povo Bugis de Celebes, Indonésia possui uma tradição de incorporar todas as características acima. Joan ainda argumenta que algumas espécies animais não-humanas, ocorre a existência de mais de dois gêneros, de forma que pode haver múltiplas formas de comportamento disponíveis para organismos de um determinado sexo biológico. Will Roscoe com Queer Spirits: A Gay Men's Myth Book e Michelle Cameron com Two Spirits: Uma história de vida com os Navajo também são famosos pesquisadores sobre o tema.

Na Sociologia, o estudo das relações entre mulheres e homens e sobre a participação das mulheres entra em foco com as pesquisas de Madeleine Guilbert sobre o trabalho das mulheres em 1946. A partir da influência dos estudos feministas, o gênero passa a eclodir a partir da desconstrução da falsa dicotomia indivíduo x sociedade empreendida por Norbert Elias, Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Bruno Latour que também buscaram soluções para apreender sociologicamente a realidade social no duplo movimento sartreano ("interiorização da exteriorização e da exteriorização da interiorização”), abrindo então caminho ao estudo da diferenciação social, processo que torna possível a desconstrução de outras dicotomias clássicas como: "particular x universal; sujeito x objeto; natureza x cultura; mente x corpo; razão x emoção e dá lugar nas Ciências Sociais a abordagens não totalizantes e a um longo processo de transição de paradigmas". Essa abertura sociológica proporcionou amplo acesso à compreensão da dinâmica de gênero x sexo no mundo sociológico.

Anthony Giddens em Gênero e Sexualidade destacou que as diferenças sociais entre homens e mulheres despertam o interesse sociológico porque estão intimamente relacionadas às desigualdades e às relações de poder em uma sociedade. Na Sociologia, desta forma, predominou duas visões diferentes para a análise de gênero. Uma delas é uma abordagem guindada pela socialização de gênero que interpreta as desigualdades entre homens e mulheres como decorrente da própria socialização em papéis diferentes. Assim, no contato com organismos sociais (família, escola, igreja, etc.) é que as crianças aprendem a agir de acordo com as expectativas relacionadas ao seu sexo biológico, sem considerar, entretanto, que os indivíduos podem rejeitar ou modificar os papéis sociais de gênero. A segunda abordagem coloca que, assim como o gênero, o sexo também é construído socialmente, ou seja, o corpo humano e a biologia estão sujeitos às escolhas pessoais e ao agenciamento humano, caminhando para uma paridade praticamente indistinguível da formação natural do corpo no nascimento à medida que os mecanismos da Ciência e da Medicina avançassem. De acordo com os ideais de masculinidade e feminilidade, homens e mulheres serão encorajados a cultivar uma imagem específica do corpo e um determinado conjunto gestual.
Miriam Grossi definiu a identidade de gênero, em seu livro Identidade de gênero e sexualidade, como sendo um conjunto de padrões e expectativas de comportamentos que são aprendidos em sociedade correspondentes aos diferentes gêneros e que conformam as identidades dos indivíduos pertencentes a esses grupos. São a manifestação social ou a representação social do que é ser macho ou fêmea, em diferentes culturas ou mesmo dentro de uma mesma cultura. O processo de produção desses comportamentos não se dá de forma individual, mas depende das posições que esses indivíduos ocupam em uma determinada coletividade e em situações sociais concretas.
Margaret Mead em Sexo e temperamento em três sociedades primitivas assume que o debate sobre gênero no meio acadêmico goza de relativa concordância quanto ao fato de que embora a sociedade possua, geralmente, apenas dois sexos, não possui apenas dois gêneros e “é fundamental identificar o conjunto de gêneros em determinado agrupamento social”. Segundo ela, há ainda pesquisadores sociais que mesclam papeis de gênero na categoria sexo – homem e mulher – mas, mesmo esses assumem que os papeis considerados masculinos ou femininos são majoritariamente determinados por um conjunto de regras e valores de um determinado agrupamento humano. De acordo com ela, outro ponto de concordância é a possibilidade de mudança dos padrões de comportamento, na medida em que o comportamento dos indivíduos na sociedade é influenciado por manifestações psicoantropológicas e/ou pela disposição ou pré-disposição interna de cada um.

Mead ainda cita exemplos de sociedades que ela estudou – como os membros da tribo dos Karen Padaung, na Índia.  Lá, a sociedade tem o habito de as mulheres usarem argolas progressivas no pescoço, para alonga-lo, já que nesta tribo, a mulher considerada charmosa são as que têm os pescoços mais longos. Mead reitera que visivelmente este comportamento típico dessa tribo não é universal ou intrínseco aos sexos, mas fruto de processos sociológicos que foram incorporados à concepção psíquica e cultural dos nativos. Mead indagou às mulheres mais velhas se elas conheciam casos de mulheres que não gostavam ou não queriam ter os pescoços esticados pelas argolas, e recebeu a resposta das anciãs que sim, que conheciam “rebeldes” nesse sentido, mas que a tribo não tinha o costume de aceitar essa não-adesão à formatação do papel de gênero da mulher que era o ter argolas e que estas mulheres recebiam sanções espontâneas da tribo, como a hostilidade, por exemplo, sendo que algumas abandonaram o lugar.

Jackelline Bukatter define a identidade de gênero em seu livro Orientações sobre a identidade de gênero: Gênero com o qual uma pessoa se identifica, que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento e que é diferente da sexualidade da pessoa. Identidade de gênero e orientação sexual são dimensões diferentes e que não se confundem. Pessoas transexuais que nasceram XX ou XY podem ser heterossexuais, lésbicas, gays ou bissexuais, tanto quanto as pessoas cisgênero.
Assim como Rita de Lourdes destaca em Diversidade, identidade de gênero e religião: algumas reflexões que a identidade de gênero nem sempre corresponde ao sexo do nascimento: uma pessoa pode nascer com o sexo feminino e sentir-se um homem ou vice-versa, como acontece com travestis e pessoas transexuais.
A falta de conexão entre os papeis de gênero e a natureza biológica é, em suma, perfeitamente endossada por uma grande gama de estudos históricos, sociológicos, psicológicos e antropológicos. Por sua vez, a formatação cerebral identidade de gênero e da sexualidade e suas casuais disparidades com o sexo biológico vêm sendo cada vez mais endossadas por numerosos estudos na área da Genética e da Neurociência.

Miriam Pillar Grossi destaca em Identidade de gênero e sexualidade que, diferentemente dos papéis sociais de gênero, que não são determinados biologicamente em sua maioria (embora conceba que questões biológicas têm o potencial de interferir nos comportamentos), mas sim construtos culturais e históricos, a identidade de gênero "remete à constituição do sentimento individual de identidade".  Henrietta L. Moore, nesse mesmo sentido, pontua em Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência que a identidade gênero é construída e vivida na "relação entre estrutura e práxis, entre o indivíduo e o social".

Argumenta ainda que os papéis de gênero podem ser percebidos como a representação de personagens: tudo o que é associado ao sexo biológico, fêmea ou macho, em determinada cultura é considerado papel de gênero. Estes papéis mudam de uma cultura para outra e também sofrem modificações dentro de uma mesma cultura.  Assim, os atributos que estabelecem coisas e comportamentos classificados como "típicos" ou "naturais" de mulheres ou de homens constituem os chamados papéis sociais de gênero. Na cultura ocidental, pautada pelo saber masculino, esses papéis são pautados em dicotomias: os homens seriam dotados de uma natureza ativa, menos sentimentais, dotados de racionalidade e de instinto sexual desenvolvido e, portanto, suas atividades estão situadas na esfera pública. Já as mulheres seriam mais bondosas, emotivas e sentimentais, de sexualidade menos desenvolvida, "naturalmente" passivas e submissas, por isso suas tarefas estão situadas na esfera privada: ser dona de casa, esposa e mãe. Isso se percebe quando há alguns anos atrás era inconcebível que a mulher andasse a cavalo “porque isso não é coisa de mulher” ou que “homem não usa rosa porque isso não é coisa de homem”. Segundo ela, as confusões que se fazem em torno do debate de gênero ocorrem justamente por confundir (intencionalmente ou não) o que seria esse homem e mulher, sob essa perspectiva. Pois, quando Butler, por exemplo, afirmou que “ninguém nasce mulher”, era especificamente a esta mulher que ela se referia. Não a uma fêmea, XX, com vagina e seios e, sim, à mulher de que falam quando dizem que “votar não é coisa de mulher”. Evidentemente, o sexo biológico é um fenômeno natural e, portanto, ninguém está argumentando que o arquétipo do corpo é social. Mas, que essa “mulher” a que atribuem coisas que ela pode ou não pode fazer, é construída culturalmente. E, se foi construída, pode também ser reconstruída ou destruída. Segundo ela, esse gênero começa a ser construído com o feto ainda no útero, quando se descobre que ele é menino ou menina e a sociedade automaticamente passa a rotulá-lo ou montar um script com comportamentos que esperarão dele. Quando se compra fogãozinhos para a menina e carrinhos para o menino, e, mais, quando os meninos são repreendidos quando tentam brincar com bonecas porque “brincar de bonecas é coisa de menina”, na verdade, o que se faz é impor uma - aqui sim o termo é oportuno - Ideologia de Gênero. Tenta-se condicionar o comportamento da criança para que ela se adeque a um certo padrão de gênero. Temos algo não de natureza intrínseca e que, portanto ocorrem como uma escolha que parte internamente, de dentro para fora do indivíduo que, aqui sim, poderiam ser atribuídos a arquétipos biológicos. O que se tem é uma imposição externa que deve delinear o comportamento do indivíduo deixando claro que há uma "barreira" que ele não deve transpor. Tal situação seria bem diferente da situação em que o próprio indivíduo – macho ou fêmea - nem um pouco influenciado por qualquer interferência externa decidisse brincar apenas com carrinhos porque simplesmente não gosta de brincar de bonecas ou com fogãozinhos. Já que subliminarmente, fica compreendido que a função da menina não é brincar de espadinhas, de revólveres, de soldado, de super-heroína que salva o dia, ou de piloto de corrida maluca, a função da menina é cuidar dos moleques e fazer a comidinha, cuidar da casa.

Mas, foi o sexologista e Psicólogo John Money quem consagrou a expressão gender role no meio acadêmico. Histórias trágicas de transgêneros na Literatura Médica sempre denunciaram que dispositivos ambientais por si mesmos eram insuficientes para alterar o gênero de um ser humano, uma vez que este é uma síntese complexa de adequação biológica ao meio em que não há determinância de apenas um dos fatores.

Essa percepção de gênero determinado socialmente foi enterrada a partir das pesquisas do próprio John Money e do seu caso John/Joan, considerado um clássico na Academia.

O modelo de Money pressupunha a primazia do ambiente (nurture) sobre a Biologia (nature) como fundamento para prescrever terapêuticas nos casos de neonatos portadores de genitália ambígua e, igualmente, de traumatismo genital em crianças que não apresentavam anomalias congênitas.

Ou seja, partindo do pressuposto de que o gênero humano é totalmente construído pelo meio, Money extraiu as conclusões lógicas dessa premissa e compreendeu que um indivíduo que fosse socialmente condicionado desde que nascesse a adequar-se a um determinado gênero diferente daquele que realmente era o seu, cresceria e tornar-se-ia aparelhado com o gênero atribuído. Ou seja, não há SEU gênero, mas sim um gênero atribuído no qual você se adequa. Money testou sua hipótese em um paciente neonato chamado Bruce Reimer que, em um acidente, teve seu pênis carbonizado e gangrenado, sendo amputado. Money instruiu a família a observar suas recomendações terapêuticas e o bebê foi submetido a cirurgias adicionais, teve seu nome modificado para Brenda e a família passou a tratá-lo como menina. A singularidade no processo reside no caminho inverso tomado para com os transgêneros, ou seja, era a primeira vez na Literatura que tentavam converter pelo ambiente um potencial cisgênero não-intersexual em um transgênero. Os trabalhos de Money rivalizavam com os artigos do psiquiatria Bernard Zuger nos quais ele relatava diversos estudos clínicos em que adolescentes e adultos intersexo e transgêneros, rejeitando o gênero em que foram criados, insistiam em trocá-lo. Zuger também relatou que indivíduos intersexo por ele atendidos insistiam em afirmar que “ouviam uma voz interior que lhes dizia que, [em relação a seu sexo], as pessoas em posição de autoridade a seu redor estavam todas erradas”. Ainda que “os médicos insistissem em afirmar que eles eram mulheres, removessem seus testículos, lhes injetassem estrogênio, e lhes providenciassem uma vagina cirúrgica, eles sabiam que eram homens”. Outro estudioso famoso de gênero e rival de Money foi o médico Milton Diamond (professor emérito de Biologia Reprodutiva da Universidade do Havaí, em Manoa), que contestou a linha acadêmica de Money afirmando: “Teoricamente, nossas descobertas indicam que são inadequadas as doutrinas que pregam as origens dos gêneros como estritamente hereditárias ou ambientais. De um lado, é evidente que orientação e papel de gênero não são determinados de maneira inata, instintiva e automática por agentes físicos como cromossomos. Por outro, é também evidente que o sexo [cirurgicamente] atribuído e o sexo de criação tampouco determinam, de maneira automática e mecânica, o papel de gênero e a orientação [sexual].
Diz ainda: “[...] assumir que o papel sexual representa uma elaborada questão, quase que exclusivamente cultural, não sujeita aos tabus e potentes mecanismos de defesa que se sobrepõem a uma prepotência biológica ou organização e potenciação prenatal, parece injustificável e, com bases nos dados apresentados, não parece [devidamente] substanciada”. Mais tarde complementou: “a natureza impõe limites à identidade sexual e à preferência por parceiros, e é dentro desses limites que as forças sociais interagem e os papéis de gênero são formulados, [o que constitui] uma teoria de interação bio-social”.

Outro cientista que concordou e endossou a percepção Biologia/Ambiente foi o urologista infantil William Reiner que passou os primeiros 18 primeiros anos de sua carreira médica na Califórnia, realizando cirurgias genitais ‘normalizantes’ em crianças andróginas. Reiner relatou que em 1986 “encontrou um paciente que mudou sua vida”: uma adolescente, “biologicamente ele – um ser masculino, 46XY, que tinha uma disposição de cromossomos que impedia a diferenciação masculina dos genitais”. Reiner realizou “[nele] uma cirurgia de mudança de sexo e a ex-menina assumiu, sem qualquer esforço, o sexo marcado em seu DNA, não o sexo atribuído”. Esse caso serviu para confirmar em Reiner o que ele "desconfiava" há anos: que “a base psicológica da identidade psicossexual não é anulada tão facilmente pelo ambiente e pela educação”, chegando à desconfortável conclusão de que tinha errado em sua carreira de cirurgião, ajudando crianças andróginas a terem um sexo definido. Após “18 anos, como cirurgião, deixou o bisturi [e] passou a se dedicar à psiquiatria infantil, especializado em desenvolvimento psicossexual e estados andróginos”. Reiner critica o modelo proposto por Money e seus colegas, o qual impõe à criança uma “identidade sexual” através “de uma ordem categórica dos médicos e as pessoas que cuidam dela se negam a esclarecer qualquer dúvida ou confusão que a criança demonstre (...) Temos de aprender a ouvir a criança. Ela nos dirá o que é melhor fazer”. O resultado-final do experimento de Money foi desastroso e após muito sofrimento e auto-mutilação, Bruce Reimer cometeu suicídio.

Grande parte das contribuições dos pensadores(as) sociais do século XX em torno do sexo identidade e gênero têm um caráter atual apenas histórico. O psiquiatra Vernon Rosario comenta que o modelo de Money para o gênero foi “influente para muitas feministas da década de 1960”, em especial porque, ao fazer “a distinção teórica entre sexo e gênero”, foram centrais ao argumento de que “biologia não é destino”, isto é, “o sexo biológico não determina os traços psicológicos”, e “o gênero é moldado, de maneira importante, por fatores sociais”. O que é uma verdade, mas que o século XX que saia de uma longa trajetória histórica de visualização do sexo associado ao gênero e os dois determinados pela nature (o chamado inatismo ou determinismo genético) não estava preparado para ouvir, a menos que tal perspectiva tivesse um rival diametralmente oposto, que veio a ser a tese nurture (o comportamentismo ou determinismo social) de John Money. A síntese entre os dois extremos da reta darão à luz à Genética do Comportamento aplicada à Sexualidade e a Teoria de Gênero Contemporânea, que expõe justamente um conceito de sexo, identidade de gênero, gênero, orientação sexual bem mais complexos (mas, não apenas, milhares de outros comportamentos, como escrever com a mão direita ou esquerda, estatura, etc.) e que são determinados por uma “interação complexa entre genes e ambiente (nos humanos, a cultura como sendo um dos subconjuntos do ambiente) em que nenhum dos dois é determinante por si só”. Prevalecendo, portanto, a tese meio-termo de que ambas as Ciências têm muito a contribuir no debate sobre Gênero e em como a interação ambiental-cultural-moral e aquilo que se chama Herança de características complexas e multifatoriais aplicada acontece. Apesar disso, Rosario complementa dizendo que a própria “imprensa conservadora também se utilizou do caso John/Joan para, através dessa queda acadêmica do determinismo social, ampliar infundadamente suas conclusões para divulgar um aparente triunfo do determinismo biológico sobre o construtivismo social, atacar determinados estudos e indicar que a orientação sexual, assim como o gênero seriam biologicamente determinados.” O que mostra que se no meio acadêmico a teoria de gênero contemporânea evoluiu para outro patamar, a sociedade não acompanhou essas discussões e permanece com uma ideia fixa de sexo que, assim como a tese nurture, foi igualmente refutada.

Em 1972, o Comitê da Associação Médica Americana para a Sexualidade Humana publicou um artigo afirmando que a psicoterapia era ineficiente para transexuais, e que a Terapia de Redesignação Sexual era mais útil.
"Numerosos outros tratamentos foram usados no passado, sendo agora considerados nitidamente ineficientes para pessoas com significante e persistente identidade de gênero invertida, incluindo terapia de aversão, medicamentos psicoativos, terapia eletroconvulsiva, tratamentos hormonais consistentes com o gênero do nascimento e mesmo a simples psicoterapia".

Uma questão sempre muito levantada com relação à trangêneros é o fator de arrependimento pós-cirúrgico. Então, vamos aos fatos:

O arrependimento de se fazer cirurgias, na verdade, é muito raro. Literalmente todos os estudos modernos estimam que o nível de arrependimento está abaixo de 4%, e a maioria estima que esteja entre 1 e 2%.

Em alguns outros estudos avaliando largo espaço de tempo, nenhum dos participantes demonstrou arrependimento por ter feito a transição médica.

Não é surpresa alguma que conforme a sociedade aceita mais as pessoas transgênero, elas sofrem menos efeitos colaterais dos estresses de ser uma minoria. Essa conclusão é endossada por outros estudos recentes que descobriram que indivíduos que passam pelo procedimento não apenas estão em situação melhor que aqueles que não passaram como também não têm distinção relevante nenhuma em seu funcionamento cotidiano que a população em geral.

Essas descobertas coadunam com o fato atestado de que o acesso a cuidados médicos a transexuais melhoram a qualidade de vida em vários eixos, inclusive o funcionamento sexual, autoestima, imagem corporal, ajuste socioeconômico, vida familiar, relacionamentos, status psicológico e satisfação de vida em geral. O acesso à CCS reduz a taxa de suicídio por um fator de 3 a 6 (entre 67% e 84%), por exemplo, a citada meta-análise de estudos de acompanhamento realizada em 2010 relatou que "A acumulação de estudos mostra que, após a readequação de sexo, 80% dos indivíduos com GID relataram melhora significativa na disforia de gênero (IC 95% = 68-89%; 8 estudos; I2 = 82%), 78% relataram melhora significativa nos sintomas psicológicos (IC 95% = 56-94%; 7 estudos; I2 = 86%); 80% relataram melhora significativa na qualidade de vida (IC 95% = 72-88%; 16 estudos ; I2 = 78%) e 72% relataram melhora significativa na função sexual (IC 95% = 60-81%; 15 estudos; I2 = 78%) ". O estudo concluiu que "evidências de qualidade opaca sugerem que a readequação de sexo que inclui intervenções hormonais e cirúrgicas em indivíduos com GID provavelmente melhora a disforia do gênero, o funcionamento psicológico, as comorbidades, a função sexual e a qualidade de vida geral”.

Outro estudo suíço de 2009 descobriu que 95% dos indivíduos que fazem a transição relatam resultados positivos em suas vidas como resultado.

O tratamento da disforia de gênero não existe como tentativa de corrigir a identidade de gênero do paciente, mas para ajudar o paciente a se adaptar:
"(sobre mulheres trans) Em estudos de acompanhamento, a cirurgia de redesignação sexual ajudou algumas pessoas transexuais a viver vidas mais felizes e mais produtivas e, portanto, é justificada em pessoas transexuais motivadas, adequadamente avaliadas e tratadas que completaram uma experiência de vida de 1 a 2 anos em um papel de gênero diferente de acordo com o procedimento padrão já previsto. Antes da cirurgia, as pessoas transexuais muitas vezes precisam de assistência com vivência pública, incluindo auxílio com comportamento e modulação vocal. A participação em grupos de apoio, disponíveis na maioria das grandes cidades, geralmente é útil (...) [sobre homens trans] A cirurgia pode ajudar certos pacientes a alcançar uma maior adaptação e satisfação da vida. Semelhante às mulheres trans, os homens trans devem viver no papel do sexo masculino por pelo menos um ano antes da cirurgia. Resultados anatômicos dos procedimentos cirúrgicos neofálico costumam ser menos satisfatórios em termos de função e aparência do que os procedimentos neovaginais para as mulheres trans."

O renomado Kaplan and Sadock's Comprehensive Textbook of Psychiatry afirma: "quando a disforia do sexo do paciente é profunda e constante, a redesignação sexual é, muitas vezes, a melhor solução. O arrependimento tende a ocorrer em casos de diagnóstico errado, com ausência de vivência na vida real ou resultados cirúrgicos ruins. (...) Em adolescentes, o diagnóstico cuidadoso e os seguintes critérios rigorosos podem garantir bons resultados pós-operatórios".

Estudo de 2006 avaliando a qualidade de vida em indivíduos transgêneros de sexo feminino relatou: "A análise dos conceitos de saúde da qualidade de vida demonstrou diferença estatística significativa ( p <0,01) na qualidade de vida entre os participantes transgêneros da FTM em comparação com a população masculina e feminina dos EUA, particularmente em relação à saúde mental. Os participantes transgêneros da FTM que receberam testosterona (67%) relataram resultados de maior qualidade de vida estatisticamente significativos ( p <0,01) do que aqueles que não receberam terapia hormonal." Concluiu, portanto, que "Os participantes transgêneros da FTM relataram redução significativa da qualidade de vida relacionada à saúde mental e requerem foco adicional para determinar a causa desse sofrimento. Fornecer a essa comunidade o cuidado hormonal que requerem está associado à melhoria da qualidade de vida". Um estudo holandês que analisou o funcionamento psicológico e sexual de 162 candidatos adultos requerentes à redesignação de sexo antes e depois do tratamento hormonal e cirúrgico constatou: "Após o tratamento, o grupo não era mais do sexo disfórico. A grande maioria funcionava bem psicologicamente, social e sexualmente”.

Estudo-acompanhamento de longo prazo (1973-2003) realizado na Suécia: Constata que a morbidade, o suicídio e a mortalidade em pessoas trans pós-operatorias ainda eram significativamente maiores do que na população geral, sugerindo que a terapia de redesignação sexual não é suficiente para tratar a disforia do gênero, destacando a necessidade de melhorar a assistência médica após a cirurgia. "Na escala GAF (DSM-IV), os transexuais femininos obtiveram resultados significativamente maiores do que os dos transexuais do sexo masculino (85,2 contra 76,2). Embora não tenha sido observada diferença no funcionamento psicológico (SCL-90) entre o grupo de estudo e uma população normal, foram encontrados indivíduos com psicopatologia pré-existente. O estudo detectou mudanças gerais positivas em suas vidas familiares e sociais. Nenhum deles mostrou algum arrependimento sobre o SRS. Uma orientação homossexual, uma idade mais jovem ao se candidatar a SRS, e uma aparência física atraente foram fatores prognósticos positivos". Conclui, portanto, que "enquanto a redesignação do sexo é uma terapia eficaz para os transexuais, o transexual pós-operatório continua a necessitar de cuidados em alguns aspectos".

Uma revisão sistemática de 2009 que analisou procedimentos cirúrgicos individuais concluiu que:
"Oitenta e dois artigos publicados (38 MTF; 44 FTM) preencheram os critérios de inclusão identificados nos 13 procedimentos cirúrgicos. Para o transsexualismo do MTF, não houve evidências que satisfizessem os critérios de inclusão em procedimentos de labiaplastia, penicectomia ou orquidectomia. Uma grande quantidade de evidência estava disponível sobre procedimentos de vaginoplastia e clitoroplasty. Para o transsexismo FTM foram relatados resultados satisfatórios. Resultados relacionados à capacidade de realizar relações sexuais, atingir orgasmo enquanto permanecem. Algumas complicações foram relatadas para os procedimentos MTF e FTM. (...) A evidência sobre a cirurgia de readequação de gênero tanto no transsexualismo MTF como no FTM tem várias limitações em termos de:
(a) falta de estudos controlados,
(b) a evidência não coletou dados prospectivamente,
(c) perda elevada de seguimento e
(d) falta de medidas de avaliação validadas.

Alguns resultados satisfatórios foram relatados, mas a magnitude dos benefícios e danos para os procedimentos cirúrgicos individuais não pode ser estimada com precisão usando a evidência atual disponível”.

Uma pesquisa de Boyle e Meyer sustentou que: "Estudos anteriores sugerem que muitos transsexuais evidenciam um diagnóstico do Eixo I de acordo com a classificação DSM-IV (p. Ex., Psicoses, desordem afetiva maior). O estudo atual examinou retrospectivamente a comorbidade entre a disforia do gênero e a psicopatologia principal, avaliando as tabelas de 435 indivíduos disfóricos de gênero (318 homens e 117 mulheres). Todos foram submetidos a uma avaliação extensiva, abordando áreas como tratamento hormonal / cirúrgico e histórias de abuso de substâncias, doenças mentais, mutilações genitais e tentativas de suicídio. Além disso, um subgrupo de 137 indivíduos completou o MMPI. As descobertas revelaram que mais de dois terços passaram por redesignação, sugerindo um compromisso com o processo de gênero cruzado da vida real. Um quarto teve problemas com abuso de substâncias antes de entrar no tratamento, mas menos de 10% evidenciaram problemas associados a doenças mentais, mutilações genitais ou tentativas de suicídio. Aqueles que completaram o MMPI (93 mulheres e 44 homens) demonstraram perfis que eram notadamente livres de psicopatologia (por exemplo, os critérios do Eixo I ou do Eixo II). A escala em que as diferenças significativas foram observadas foi a escala Mf, e isso só foi válido para o grupo masculino-feminino. Os perfis psicológicos, medidos pelo MMPI, eram mais 'normais' no sexo desejado do que o sexo anatômico. Os resultados sustentam a visão de que o transsexualismo geralmente é um diagnóstico isolado e não faz parte de qualquer transtorno psicopatológico geral".

Apesar disso, é fato que qualquer cirurgia tem uma possibilidade de arrependimento. Acontece que o risco de arrependimento para a redesignação sexual é, na verdade, muito menor do que para muitas outras cirurgias, inclusive apresentando índice de arrependimento inferior ao índice de arrependimento de cirurgia de redução de estômago.

Por exemplo, mais de 60% das pessoas que já fizeram cirurgia plástica declararam algum nível de arrependimento, de acordo com pesquisa The British Association of Aesthetic and Plastic Surgeons, já transexuais, apenas 2% das pessoas que responderam a pesquisa no Reino Unido demonstraram ter arrependimentos quanto às alterações físicas que realizaram. E fatores de arrependimentos comumente citados são a falta de apoio da família do paciente, apoio social deficitário, transições com idade avançada, psicopatologia severa, aparência física desfavorável e resultado cirúrgico ruim.

Conforme as técnicas cirúrgicas se aprimoram, os riscos de complicações em longo prazo caíram para menos de 1% em pacientes homem-para-mulher, o que acompanha o padrão de queda de arrependimentos.

Atualmente, as principais organizações de saúde nos EUA e no Reino Unido apoiam a eficácia da terapia de redesignação sexual em casos avaliados adequadamente. O resumo da Comissão Task-Force da Associação Americana de Psiquiatria sobre o relatório da GID de 2012 afirma: "A qualidade das evidências relativas à maioria dos aspectos do tratamento em todos os subgrupos foi determinada como baixa, no entanto, áreas de amplo consenso clínico foram identificadas e foram consideradas suficientes para recomendações de apoio para tratamento em todos os subgrupos".

Seguindo o relatório da Comissão Task-Force, a APA emitiu uma declaração afirmando que reconhece que em casos adequadamente avaliados, as intervenções hormonais e cirúrgicas podem ser medicamente necessárias e se opõem a "Opõe-se à exclusões categóricas de cobertura para tais tratamentos médicos".
"A literatura demonstra benefícios claros de intervenções médicas e cirúrgicas para auxiliar a variação de gênero em indivíduos que procuram transição. No entanto, as seguradoras públicas ou privadas muitas vezes não oferecem, ou podem especificamente excluir cobertura para tratamentos medicamentosos necessários para transição de gênero. Acesso a cuidados médicos (tanto médicos quanto cirúrgico) afetam positivamente a saúde mental de indivíduos transgêneros e com variantes de gênero.
(...)

Portanto, a American Psychiatric Association:
1. Reconhece que os indivíduos transgêneros e com  variações de gênero adequadamente avaliados podem se beneficiar muito dos tratamentos médicos e cirúrgicos de transição de gênero.
2. Defende a remoção de barreiras aos cuidados e apoia a cobertura de seguro de saúde público e privado para tratamento de transição de gênero.
3. Opõe-se à exclusões categóricas de cobertura para tais tratamentos médicos necessários quando prescritos.

(...) A falta de acesso aos cuidados afeta negativamente a saúde de transgêneros e variantes de gênero, e ambos Os tratamentos hormonais e cirúrgicos demonstraram ser eficazes nesses indivíduos. Diretrizes de prática foram desenvolvidos com base em pesquisas científicas, estudos e publicações e disponíveis para acesso clínico. A American Medical Association e A American Psychological Association têm, ambos, declarações de posição que indicam a importância desse acesso a cuidados para transgêneros".

Outros 71 artigos revisados demonstrando a eficácia de cuidados médicos ligados à transição podem ser encontrados aqui nesta compilação.

Um tópico delicado é a questão das crianças transgêneros.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) explica que: "O pediatra poderá ser o primeiro profissional a ser procurado para conversar sobre a sexualidade e eventualmente sobre as variações de gênero das crianças e adolescentes, e deve estar capacitado para tal. (...) As crianças entre 6 e 9 meses são capazes de diferenciar, quanto ao gênero, vozes e faces. Aos 12 meses, associam vozes masculinas e femininas a determinados objetos tidos como típicos de cada gênero. Demonstram preferências por padrões de cores e brinquedos, algo percebido até entre chimpanzés e, embora mais nítido aos 2 anos, crianças de 17 a 21 meses de vida têm habilidade de se identificar como meninos ou meninas e apresentam brincadeiras relacionadas ao gênero. A identidade de gênero tem início entre 2-3 anos de idade. Entre 6-7 anos, a criança tem consciência de que seu gênero permanecerá o mesmo. Na maioria das pessoas, existe uma conformidade entre o sexo biológico características genitais presentes ao nascimento) e a identidade de gênero (a experiência emocional, psíquica e social de uma pessoa enquanto feminina, masculina ou andrógina defi nida pela cultura de origem). Entretanto, em alguns indivíduos existe uma incongruência entre o sexo biológico e a identidade de gênero. O estresse, sofrimento e desconforto causados por essa discrepância é chamado de disforia de gênero."

Em 2012, a Academia Americana de Pediatria fez um "primeiro estudo de uma Entidade norte-americana sobre crianças e adolescentes com transtorno de identidade de gênero. Os pacientes foram encaminhados para tratamento médico a um centro pediátrico que apoia um Serviço de Gestão de Gênero multidisciplinar". A conclusão a que chegaram é que "crianças com disforia de gênero que não recebem tratamento médico ou aconselhamento para GID podem estar em alto risco para certos problemas comportamentais e emocionais. Dos 97 pacientes com menos de 21 anos que preencheram os critérios para o GID, 44% tinham história prévia de sintomas psiquiátricos, 37% estavam em uso de medicamentos psicotrópicos e 21,6% tinham histórico de automutilação e tentativas de suicídio. Aqueles que receberam tratamento adequado e foram mais integralizados à sociedade permaneceram com níveis normais de depressão oscilando ligeiramente para cima em poucos casos."
"Este estudo defende que a avaliação precoce de crianças que apresentam DIV, mas o tratamento com medicamentos não deve ser iniciado até atingir a puberdade. Os pediatras e os pais devem consultar profissionais experientes em saúde mental para crianças e adolescentes que estejam passando por questões relacionadas ao gênero. Quando os pacientes estão suficientemente maduros fisicamente para receber tratamento médico, eles devem ser encaminhados a um especialista médico ou a um programa de tratamento de DIG." (...) "A idade média e o estágio de Tanner estavam muito avançados para que a terapia supressora puberal fosse uma opção acessível para a maioria dos pacientes. Dois terços dos pacientes foram iniciados em terapia hormonal cruzada. Maior consciência do benefício da intervenção médica precoce é necessária. Os efeitos psicológicos e físicos da supressão puberal e/ou dos hormônios inter-sexuais em nossos pacientes requerem mais investigações" (...) "Nosso estudo destaca a importância de educar pediatras sobre orientações de cuidados para crianças e adolescentes com DIG. Muitas vezes, a primeira discussão que os pais têm sobre os comportamentos variantes de gênero é com o pediatra de seu filho. Muitos dos nossos pacientes adolescentes relatam que foi o seu pediatra que primeiro perguntou se eles estavam enfrentando problemas relacionados ao gênero, o que se tornou o trampolim para aconselhamento e posterior avaliação médica. Mesmo que os pacientes sejam jovens demais para receber tratamento médico, eles e suas famílias podem se beneficiar do aconselhamento para lidar com as dificuldades de ser ou criar uma criança com variantes de gênero."

Em outro estudo mais específico, a Academia Americana de Pediatria analisa as crianças transgênero "que transicionaram socialmente, isto é, que se identificam como o gênero “oposto” ao seu sexo natal e são apoiadas a viver abertamente como esse gênero (...) estudos anteriores encontraram taxas notavelmente altas de ansiedade e depressão nessas crianças com questões de gênero. Aqui, nós examinamos, pela primeira vez, a saúde mental em uma amostra de crianças transexuais socialmente transicionadas. Como resultado, as crianças transgênero não apresentaram elevações na depressão e ansiedade em comparação com a média da população. Eles não diferiram dos grupos de controle nos sintomas de depressão e tiveram apenas sintomas de ansiedade marginalmente maiores. Como conclusão, as crianças transexuais socialmente transicionadas que são apoiadas em sua identidade de gênero têm níveis normativos de depressão e apenas elevações mínimas na ansiedade, sugerindo que a psicopatologia não é inevitável dentro deste grupo. Especialmente notável é a comparação com relatórios de crianças com GID; As crianças transgênero socialmente transicionadas têm índices notavelmente mais baixos de psicopatologia internalizante do que o relatado anteriormente entre crianças com TIG vivendo como seu sexo natal."

Assim, a American Academy of Pediatrics em conjunto com a American Association of Child and Adolescent Psychiatry, American Counseling Association, National Association of School Psychologists, National Association of Social Workers, National Education Association, American Psychiatric Association, Royal College of Psychiatrists Britânico, UK Council for Psychotherapy, Royal College of Physicians, British Psychological Society, Royal College of Paediatrics and Child Health, British Association of Urological Surgeons, Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Speech and Language Therapists, Royal College of General Practitioners, Royal College of Surgeons "apoia as crianças e adultos transexuais e condena as tentativas de estigmatizar ou marginalizá-los. Acreditamos que indivíduos transexuais não são um problema. Eles são membros de nossas famílias, nossas comunidades e nossa força de trabalho.
Como pediatras, sabemos que as crianças transexuais se saem muito melhor quando se sentem apoiadas por sua família, escola e comunidade. Envergonhar as crianças com base em sua identidade ou expressão de gênero é prejudicial à sua saúde socio-emocional e pode ter consequências ao longo da vida. Isso inclui discurso público que deslegitima as contribuições que os indivíduos transgêneros fazem à sociedade. Insta os estados a promoverem mecanismos que possibilitem um atendimento com alternativa para transição de gênero acessivel a essas pessoas, condenam a discriminação em ambientes como em banheiros, por exemplo". (...) Adolescentes que são transgêneros já estão em risco elevado de violência, intimidação e assédio e são mais propensos à depressão e a se envolverem em lesões autoprovocadas, incluindo suicídio (...) O HB2 e outras medidas que tramitam nos legislativos estaduais em todo o país exacerbam esses riscos criando ambientes hostis para os jovens transgêneros, todos implicando a mesma mensagem; 'você é diferente, algo está errado com você, você precisa mudar para se encaixar aqui'".
"No início deste ano, a Academia e várias outras organizações líderes de saúde e bem-estar enviaram uma carta instando os governadores a se oporem à legislação discriminatória contra pessoas transgêneros.

"Nós, como organizações comprometidas em servir os melhores interesses de todos os jovens, estamos profundamente alarmados com a enxurrada de leis introduzidas em legislaturas estaduais em todo o país este ano que prejudicariam diretamente pessoas transgêneros e particularmente estudantes transexuais. Estas propostas chocantes comprometeriam a segurança e bem-estar dos jovens, todos nós temos o dever e obrigação de apoiar e proteger.

Todas as crianças de nossa nação merecem proteção e tratamento iguais em suas salas de aula; Os projetos antitransgêneros promovem a discriminação e prejudicam os estudantes, suas famílias e suas comunidades.

Desde que as assembléias estaduais começaram a se reunir este ano, já vimos mais de duas dúzias de projetos de lei introduzidos procurando negar aos estudantes transgêneros o acesso a espaços sexuados que incluem banheiros e armários impedindo-os de jogar em equipes esportivas que sejam consistentes com sua identidade de gênero.

As crianças transexuais já estão em risco elevado de violência, intimidação e assédio, e essas medidas exacerbam esses riscos criando um ambiente hostil em um dos lugares onde eles devem se sentir mais seguros e mais integrados. Além disso, os alunos que seriam afetados por essas contas estão entre a população vulnerabilizada com perigo de sofrer com depressão e se envolver em auto-mutilação, incluindo o suicídio.

A Human Rights Campaign (HRC), a maior organização de direitos civis dos EUA que trabalha para alcançar igualdade de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros descobriu que três quartos de estudantes transgêneros sentem-se inseguros em ambientes escolares. Acreditamos que esse número surpreendente só aumentará se essas medidas continuarem direcionadas esses jovens. (...) Nós nos opomos a esses projetos vergonhosos e, em nome de nossos membros e comunidades, instamos legisladores em todo o país a rejeitar estas medidas prejudiciais se chegarem às suas mesas. Todo estudante merece acesso igual à educação, ao sucesso acadêmico e a um futuro no qual eles têm o poder de cumprir seu verdadeiro potencial, e essas leis contrariam esse princípio fundamental, que guiou por muito tempo nossa política educacional da nação."
(...)
"Toda criança explora maneiras diferentes sua expressão de gênero. Algumas crianças se expressam de maneiras que desafiam as expectativas dos outros: pense em um menino que prefere bonecas e jogos de vestir ou uma menina que usa cabelo curto e recusa saias. Estas crianças, que são não típicas em sua expressão de gênero, foram uma vez rotulados como "moleques" ou "mariquinhas" - e adultos às vezes presumem que eles serão gays ou lésbicas quando crescerem. Hoje, nós os descrevemos como gender-expansive.

A maioria das crianças com expansão de gênero sentem-se confortáveis com o sexo (masculino ou feminino) que a eles foi atribuído no nascimento. Eles simplesmente não se conformam aos estereótipos que as pessoas ao seu redor esperam desse sexo.

Ocasionalmente, uma criança afirma consistentemente uma identidade de gênero inconsistente com o sexo atribuído no nascimento. (...) Essas crianças também podem expressar desconforto com o sexo, como o desejo de se livrar dos genitais ou um desejo de que eles tivessem "nascido em um corpo diferente". Eles geralmente dizem "eu sou ..." ao invés de "eu queria ser...". Crianças e adultos que se identificam com um gênero e/ou sexo diferente do que eles receberam no nascimento são conhecidos como transgêneros. Crianças transexuais são um subconjunto de crianças com gênero-expansivo.

Seja gênero expansivo ou transgênero, sinais de que o gênero de uma criança é "diferente" podem emergir a qualquer idade. Um estudo mostrou que pais e cuidadores de jovens transgêneros notaram esses sinais numa idade média de 4 anos e meio, enquanto as próprias crianças descreveram seu gênero como “diferente” por volta dos 6.

No entanto, muitas pessoas transexuais não expressam (ou sequer compreendem) sua identidade de gênero até que sejam adolescentes ou adultos.

A diferença entre crianças transexuais e outras crianças com gênero expansivo é importante, mas nem sempre é óbvio no começo. Embora algumas crianças - transexuais ou não - sejam muito claras em sua identidade de gênero, muitos levam tempo para descobrir. Às vezes, a expressão de gênero de uma criança ou o que eles dizem sobre seu gênero parece estar em fluxo. A criança pode expressar seu gênero de forma diferente na escola do que em casa, ou tem traços marcadamente masculinos e femininos, ou role-play como uma menina um dia e um menino no outro. As crianças podem apresentar suas próprias explicações, como ser "um menino que gosta de coisas de garotas", "tanto um menino quanto uma menina", ou um "garoto arco-íris". Algumas crianças sempre se sentirão entre os gêneros e podem crescer para se identificar como não-binárias, não exclusivamente masculinas ou femininas.

Alguns pais consideram a identidade e a expressão de gênero ambígua ou em mudança de uma criança mais estressante do que uma clara identidade transgênero. Embora o que uma criança diz sobre seu gênero em uma idade jovem possa sugerir que eles se tornarão transgêneros, muitas vezes não há como ter certeza. Sem saber, é difícil para muitos pais e cuidadores, por isso pode ser tentador encorajar a criança a “escolher uma”. Identificar-se com seu sexo designado ou, em alguns casos, o "outro" sexo. A pressão para pousar em um gênero ou outro pode ser particularmente forte para os pais que vivem em comunidades ou culturas onde ser menino ou menina é um fator importante na vida de uma pessoa. Embora as famílias e as comunidades possam enfrentar a incerteza, a pressão (seja para transição ou para impedir comportamentos expansivos de gênero) é prejudicial, então sua paciência e apoio são imensamente importantes.

Não é incomum que uma criança se sinta pressionada - em casa, escola ou em outro lugar - para esconder seus traços expansivos de gênero.
Essa pressão social, quando existe, pode ser intensa e muito dolorosa, levando as crianças a esconderem seus “eus verdadeiros” completamente. Famílias podem até encorajar a criança a fazê-lo, na esperança de protegê-los de assédio moral.

Infelizmente, esconder traços expansores de identidade ou gênero podem causar sérios problemas durante a infância e mais tarde na vida - incluindo depressão, ansiedade, autoflagelação e até suicídio.

As crianças se saem melhor quando as famílias as ajudam a lidar com a pressão social e intimidação, mas aceitando seus traços de gênero-expansivo. Esta é a essência do que é conhecido como “aceitação de gênero”. cuidadores podem achar útil trabalhar com um profissional de saúde comportamental, exploração de gênero da criança e aprender a defender seu filho.

Psicólogos e neurocientistas não sabem exatamente porque algumas crianças são transexuais ou gênero-expansivos, enquanto outros não são. Diane Ehrensaft, psicóloga e autora do desenvolvimento de dois livros sobre crianças transexuais, escreve que o gênero de cada criança é “baseado em três tópicos: natureza, criação e cultura”.

Embora as experiências sociais ajudem a moldar a identidade de gênero de uma criança, nem famílias, nem profissionais podem mudar essa identidade, e tentar fazer isso pode ser extremamente prejudicial. Este fato freqüentemente vem como um alívio para os pais que foram acusados (por parentes, amigos e mesmo profissionais) de “causar” a expansão de gênero da criança. Especialistas como o Dr. Ehrensaft recomendam que famílias foquem menos no porquê seu filho é transgênero e mais sobre o que a criança transgênero precisa para crescer segura e saudável.

DISFORIA DE GÊNERO
Enquanto a paciência, o apoio e a escuta cuidadosa da criança são os melhores “remédios” para uma criança transgênero, as crianças que descrevem claramente uma identidade transgênero podem exigir Cuidado.

Muitas crianças transgênero experimentam disforia de gênero - definida pelo World Professional Association for Transgender Health como “desconforto ou sofrimento causado por discrepância entre a identidade de gênero de uma pessoa e seu sexo atribuído no nascimento”, incluindo características físicas do sexo e o papel de gênero associado.

A disforia de gênero varia de manejável à debilitante, causando problemas com o desempenho escolar e interações sociais.
Os sintomas podem incluir ansiedade, depressão, autoflagelação e tendências suicidas.

Dependendo da idade da criança e dos sinais de sofrimento, aconselhamento ou terapia "afirmativa ao género" pode ajudar a gerenciar a disforia de gênero. No entanto, em muitos casos, o remédio para disforia é a transição de gênero: tomar medidas para afirmar o gênero que se sente confortável e autêntico para a criança. 
É importante entender que, para crianças que não atingiram a puberdade, a transição de gênero não envolve intervenções médicas: consiste em mudanças sociais como nome, pronome e expressão de gênero.

Embora a aceitação e a afirmação em casa possam ajudar bastante, as crianças não crescem no vácuo, de modo que até mesmo crianças com famílias que as apoiam podem sofrer de disforia. No entanto, as famílias e os médicos de crianças transgênero frequentemente relatam que o processo de transição de gênero é transformador - até mesmo salva-vidas. Frequentemente, pais e clínicos descrevem melhorias notáveis no bem-estar psicológico da criança".

Sociedade Brasileira de Pediatria:
"Crianças e adolescentes que apresentam discordância entre o sexo biológico e a identidade de gênero podem ser alvos de bullying, rejeição, violência física ou verbal e ostracismo social, repercutindo negativamente na qualidade de vida e no bem-estar psicológico. A família, frequentemente, é alvo de críticas e rejeição, necessitando também da atenção do pediatra.
(...)

Qual é a etiologia da disforia de gênero?
A experiência de gênero resulta de uma interação complexa entre fatores genéticos, hormonais, sociais, psíquicos, cognitivos e relacionais. Alguns estudos de neuroimagem têm demonstrado que adolescentes com disforia de gênero possuem características estruturais e funcionais semelhantes compatíveis com o sexo por eles desejado.

Diversos autores encontraram evidências, estudando gêmeos monozigóticos e genes envolvidos na gênese de esteroides sexuais e a enzima aromatase, além de questões ligadas aos receptores para andrógenos e estrogênios. Também parece existir certa correlação entre influência hormonal pré-natal e o neuro-desenvolvimento cortical.
(...)

Qual é a história natural da não-conformidade de gênero?
É impossível prever quais crianças com não-conformidade de gênero irão persistir na adolescência e vida adulta. Estudos mostram que a maioria das crianças pré-púberes com não-conformidade de gênero voltarão a ficar satisfeitas com seu sexo biológico próximo à adolescência, embora, em algumas, exista uma tendência à orientação homossexual; esta informação de que a maioria das crianças e adolescentes resolverão bem e aceitarão bem o sexo biológico deve ser passada com tranquilidade e a minoria onde esta questão não se resolve deve ser acompanhada com atenção. Esse dado não significa, no entanto, que a identidade de gênero tenha uma relação direta com a orientação sexual do indivíduo. Por outro lado, quando a disforia de gênero se inicia na adolescência, existe uma grande probabilidade dela se manter na vida adulta.

Quando a disforia de gênero é suspeitada na idade pré-escolar, estudos longitudinais mostram que 85% dessas crianças voltarão a ficar satisfeitas com seu sexo biológico, embora em algumas existisse uma tendência à orientação homossexual.13 Quando a disforia de gênero surge na adolescência, existe uma grande probabilidade dela se manter na vida adulta.

É importante destacar que os estudos oferecem certa orientação, mas cada caso se apresenta como único. O pediatra deve participar junto à equipe multidisciplinar do seguimento destas crianças e adolescentes com postura atenta e cuidadosa, visando minimizar os riscos para cadasujeito, mas não fazer indicações de condutas sozinho.
(...)"
Conselho Federal de Medicina:
"Há diferenças no universo dos fenômenos, no desenvolvimento e na abordagem terapêutica dos transtornos de identidade de gênero (TIG) da criança, do adolescente e do adulto. Nas crianças e adolescentes está envolvido um processo de desenvolvimento rápido e dramático (físico, psíquico e sexual), e também uma grande variabilidade de resultados, principalmente nas crianças pré-púberes. Nestas, o TIG somente persistirá na idade adulta em torno de 6%-23%. Dentre elas, cerca de 80%-95% não o apresentará na adolescência.

Por outro lado, o transtorno de identidade de gênero do adolescente é mais provável que persista na idade adulta (...) A terapia endócrina para TIG, outrora limitada a elixires ineficazes, cremes e implantes, tornou-se razoável e racional a partir do isolamento da testosterona em 1935 e da disponibilidade do dietilestibestrol em 1938. Hoje está bem definida, variando, obviamente, em função do gênero e da idade das pessoas envolvidas.

Muitas pessoas com TIG podem apresentar disforias mesmo na idade infantil (embora mais frequente após a puberdade), que se caracterizam por angústia e aflição atribuídas à experiência subjetiva do desconforto persistente com o gênero de nascimento.

Para eles, os primeiros sinais de puberdade são frequentemente uma fonte de angústia, causando um forte efeito negativo social, emocional e problemas na escola. Mesmo aquelas que se sentem emocionalmente bem, podem quando adentram a puberdade apresentar comportamentos opostos – por exemplo: ansiedade e depressão. Por isso, a supressão da puberdade seguida pelo tratamento hormonal e eventual cirurgia parece ter inegável benefício para esses jovens.

De fato, há crescente convicção de que os jovens pré-púberes com TIG experimentam ansiedade e certos graus de sofrimento quando surge a puberdade.
Alguns consideram insuportáveis as alterações físicas do período. Assim, vários centros têm proposto e praticado uma intervenção médica precoce, com a supressão da puberdade com os medicamentos da classe dos análogos LHRH, que promovem bloqueio do eixo hormonal hipotálamo/hipófise/gônada.

Há um benefício real, prevenindo a disforia de gênero e um melhor resultado físico e psíquico, quando comparado com os jovens que somente iniciam tratamento após as primeiras fases da puberdade.

Em estudo publicado em 2011, o grupo da VU University Medical Center de Amsterdam, com mais de 20 anos de experiência no tratamento de adolescentes com transtorno de identidade de gênero, concluiu que parece ser apropriado intervir com análogos LHRH (bloqueando a puberdade), seguido de hormonioterapia para o gênero desejado, em adolescentes jovens, cuidadosamente selecionados. Negar a esses jovens a supressão da puberdade não é racional.

Centros importantes e com grande experiência em disforia de gênero juvenil, como Gent (Bélgica), Boston, Oslo e Toronto, têm introduzido a intervenção médica antes dos 16 anos, desde que a puberdade hormonal tenha começado e tenha progredido no mínimo a Tanner 2 [o estádio Tanner 1 corresponde à infância (impúbere) e o Tanner 5 à fase pós-puberal (adulta). O período puberal é caracterizado pelos estádios.

O tratamento consiste da administração de análogos LHRH para bloquear a puberdade hormonal do gênero biológico. Nenhum hormônio sexual cruzado (gênero oposto) é administrado nesta fase. Essa intervenção hormonal (análogo LHRH) não deve ser considerada como mudança de sexo per se. Seus efeitos são reversíveis.
Bloqueando, retardando ou congelando a puberdade por esse meio, ganha-se tempo para definições terapêuticas futuras. (...)

Considera-se que somente na idade adulta a identidade de gênero está suficientemente consolidada para permitir decisões acerca de intervenções invasivas e irreversíveis, como terapias hormonais cruzadas (gênero oposto) e cirúrgicas. (...)"

A Sociedade Americana de Endocrinologia (Endocrine Society) em Comitê com The Endocrine Society, European Society of Endocrinology, European Society for Paediatric Endocrinology, Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society, and World Professional Association for Transgender Health commented on preliminary drafts of these guidelines emitiram parecer fruto do consenso entre elas:
"Das indicações atuais recomendadas:
O diagnóstico do transtorno de identidade de gênero requer o envolvimento de equipe médica multidisciplinar, incluindo clínicos, pediatras, endocrinologistas e, sobretudo, profissionais de saúde mental. Quando da propedêutica de pacientes mais jovens, há a necessidade de que esses profissionais tenham treinamento em psicologia do desenvolvimento da criança e do adolescente. Esses cuidados são necessários posto que diagnósticos inadequados ou incorretos podem ser desastrosos.

O adolescente que preenche completamente os critérios para os protocolos de mudança de sexo deve ser submetido inicialmente a tratamento para supressão da puberdade do gênero de nascimento, realizada com análogos LHRH de longo curso (meia vida longa). 'Como o diagnóstico de transexualismo em crianças pré-púberes não pode ser feito com certeza, não recomendamos o tratamento endócrino de crianças pré-púberes. Recomendamos o tratamento de adolescentes transexuais (fase 2 de Tanner) suprimindo a puberdade com análogos de GnRH até os 16 anos de idade, após o que podem ser administrados hormônios intersexuais. Sugerimos a supressão de hormônios sexuais endógenos, a manutenção de níveis fisiológicos de hormônios sexuais apropriados ao gênero e o monitoramento de riscos conhecidos em transexuais adultos'.

Durante o tratamento o adolescente deve ser estritamente monitorizado para os efeitos adversos do retardo da puberdade, e.g.: parada do crescimento e maturação óssea.

É extremamente recomendável a supressão da puberdade do gênero de nascimento antes do desenvolvimento irreversível das características sexuais. Uma vantagem deste medicamento é que seus efeitos são reversíveis. A qualquer momento que a supressão for descontinuada o desenvolvimento da puberdade espontânea ocorrerá imediatamente.

Aos 16 anos, se o adolescente continuar com o desejo de mudança de sexo, a puberdade do gênero oposto será induzida conforme protocolo de indução da puberdade do gênero desejado, demonstrado na tabela 2. Utiliza-se uma crescente e gradual concentração de esteroide sexual cruzado (oposto), que induzirão a puberdade do gênero desejado. O análogo LHRH deve ser continuado até a realização da gonadectomia cirúrgica definitiva.

Para os meninos, a puberdade feminina será induzida com uma dose de 05 µg/Kg/dia de 17 β estradiol oral diária, aumentada a cada 6 meses de 05 µg/Kg/dia. Aos 18 anos será dada a dose de adulto: 2 mg/dia.

Para as meninas, a puberdade masculina será induzida com ester de testosterona, começando com 25 mg/m2 a cada 2 semanas IM, aumentando a cada 6 meses a dose de 25 mg/m2. A partir de 18 anos, a dose de 250 mg a cada 3-4semanas.

O protocolo de seguimento do desenvolvimento puberal é semelhante ao da supressão da puberdade, apenas acrescido de avaliações tardias. Aos 25-30 anos para o monitoramento do desenvolvimento ósseo.

Assim, a tendência mais atual para o transtorno de identidade de gênero é iniciar a intervenção hormonal o mais precoce possível, quando dos primeiros sinais da puberdade (estádio Tanner 2). Recomenda-se então começar a supressão puberal aos 12 anos com análogos LHRH. O adolescente não experimentará os efeitos alienantes das transformações corporais na direção do gênero indesejado e o tratamento é reversível, ou seja, com a parada da medicação a puberdade sexual de nascimento se desenvolverá."
"Considerações éticas:
(...)
No campo do tratamento do jovem adolescente, pode ser que o adágio “in dubio abstine” necessite ser considerado. Principalmente quando do conhecimento de que a disforia de gênero pode ser evitada ou atenuada com a intervençao hormonal precoce.

Consciente do potencial danoso da não intervenção na fase pré-adolescência e adolescência (disforia de gênero com todas as suas consequências psicossociais), a não disponibilidade de cuidados e tratamento pode ser questionada no campo da ética e, obviamente, no campo legal. (...)

Da resposta ao consulente: Baseado na literatura científica visitada e nos regramentos postos nas resoluções do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo e do Conselho Federal de Medicina, este parecer propõe:

- o adolescente com transtorno de identidade de gênero deve ser assistido em centro dotado de estrutura que possibilite o diagnóstico correto e a integralidade da atenção de excelência, que garanta segurança, habilidades técnico-científicas multiprofissionais e suporte adequado de seguimento;

- essa assistência deve ocorrer o mais precocemente possível, iniciando com intervenção hormonal quando dos primeiros sinais puberais, promovendo o bloqueio da puberdade do gênero de nascimento (não desejado);

- aos 16 anos, persistindo o transtorno de identidade de gênero, gradativamente deverá ser induzida a puberdade do gênero oposto. Para os jovens, a administração de 17 β estradiol oral (hormônio feminino) e para as jovens, a de testosterona intramuscular (hormônio masculino), conforme os protocolos detalhados no corpo deste parecer."

American Academy of Pediatrics:
"TRANSIÇÃO DE GÊNERO
A transição de gênero é um termo abrangente para as etapas que uma pessoa transgênero e sua comunidade tomam para afirmar sua identidade de gênero.
Dependendo da idade da pessoa e de suas necessidades individuais, as etapas podem incluir mudanças sociais, médicas, cirúrgicas e legais. Para crianças que não atingiram a puberdade, as intervenções médicas não fazem parte da transição. Nesta fase, seu processo de transição inclui "transição social" - mais sobre isso depois.
O apoio da família e da comunidade é importante durante a transição de gênero. Para as crianças, o papel da família é essencial. Pais e responsáveis ​​devem trabalhar com terapeutas e profissionais de saúde para planejar a transição. Eles devem advogar por uma transição da criança na escola, com parentes e em outras instituições. Mais importante, afirmar e apoiar a criança através de possíveis barreiras na trajetória, que podem incluir bullying, sentimento de ser “diferente” dos pares ou ser excluído de atividades sociais.

A transição de uma criança pode ser um desafio para a família inteira. Parentes e membros da comunidade às vezes questionam os pais ou responsáveis pelas decisões. Algumas famílias experimentam assédio e os irmãos de uma criança transexual podem ser provocados ou intimidados na escola. Pais e responsáveis ​​também podem se preocupar em cometer erros em suas escolhas sobre a transição. Outras famílias acham que os pais ou cuidadores não estão em pé-de-igualdade. Finalmente, as famílias muitas vezes acham difícil deixar de lado suas expectativas originais para o futuro da criança. Eles podem passar por um processo de luto em torno dessas expectativas originais - como eles celebram a identidade afirmada da criança. Como o Dr. Ehrensaft coloca, seu desafio é abandonar seus sonhos para que seus filhos possam ter seus próprios.

Devido a esses desafios, muitas famílias se beneficiam da terapia e dos grupos de apoio explorar e iniciar a transição de gênero da criança. Tal como acontece com outros eventos estressantes da vida, ter apoio de parentes, amigos e membros da comunidade - especialmente na escola e, se aplicável, locais de adoração - pode ser essencial para resolver um pouco da ansiedade, medo ou preocupação que o processo pode trazer.

"Na quinta série, deixamos [Nicole] mudar o nome dela. Ela foi para a escola em um vestido e vimos um novo filho. Ela estava feliz, empenhada e animada sobre
escola. Não houve mais problemas de raiva, não houve mais autoagressão” - Wayne Maines (Pai de uma garota transgênero de 18 anos)

Apesar dessas dificuldades, a transição de gênero de uma criança é quase sempre um evento positivo. Frequentemente, os sintomas debilitantes da disforia de gênero da criança aumentam, diminuindo o comportamento difícil com eles. Dr. Ehrensaft chama isso de teste ex post facto (“após o fato”): uma redução dramática
em stress e florescimento da felicidade para a criança e a família, indicam que a transição social foi a escolha certa.

Junto com a alegria desse bem-estar renovado, as famílias muitas vezes ficam emocionadas ao descubrir que a transição de gênero elimina a ênfase no gênero na vida de uma criança. Com sua identidade de gênero não mais em conflito, a criança pode se concentrar no importante trabalho de aprender e crescer ao lado de seus pares. Muitas crianças sentem alívio, até mesmo euforia, que os adultos em sua vida têm

Apesar da ênfase no atendimento médico nos relatos da mídia sobre adultos transgêneros, a transição de gênero para as crianças que não atingiram a puberdade é inteiramente um processo social. Os passos que uma família e comunidade tomam para afirmar identidade de gênero de uma criança são chamados de transição social. A transição social é completamente reversível.

Toda transição é diferente. Terapeutas, pais, prestadores de serviços médicos e funcionários da escola devem atuar juntos para determinar quais mudanças fazer
em um dado instante. Idealmente, porém, a criança leva a liderança nessas decisões. Por exemplo, uma criança pode pedir aos amigos do acampamento de verão que usem
seu nome antes que ela fique confortável ​​fazendo esse anúncio na escola. Por outro lado, uma criança pode insistir em dizer à vovó e vovô para usar seu novo nome e pronome, mesmo que os seus pais não tenham certeza de que os avós estão pronto para as notícias.

A idade da criança, o patrimônio cultural e o contexto religioso da família, influenciam essas decisões - incluindo o quão aberto a ser sobre o status da criança transgênero, uma vez que vivenciam sua afirmação gênero. Algumas famílias incluem apenas alguns funcionários da escola, como o diretor, enfermeiro e professor de sala de aula, nessas discussões.

Outros discutem a transição com toda a comunidade escolar, incluindo colegas e suas famílias. Embora manter o status de transexual da criança como confidencial possa reduzir o bullying, é emocionalmente desafiador para uma criança manter um segredo, e as informações podem eventualmente ser reveladas sob circunstâncias além do controle da família. Hoje, muitos especialistas recomendam ser aberto sobre o a transição da criança quando o clima da escola e da comunidade torna possível. Com essas decisões de divulgação, como em outras partes da transição, a liderança da criança geralmente é a melhor abordagem. A exceção é quando a divulgação representa um risco de segurança física: nesses casos, os pais podem precisar orientar a criança para manter seu status de transgênero privado, tranquilizando-os embora as pessoas ao seu redor tenham muito a aprender sobre gênero, não há nada de errado com ser transgênero.

TRANSIÇÃO DE GÉNERO PARA ALÉM DA INFÂNCIA:
Para crianças, pré-adolescentes e adolescentes precoces, a transição de gênero é principalmente um processo social. Crianças O início da puberdade também pode usar medicação supressora da puberdade à medida que exploram sua identidade de gênero.

Ambas as etapas são completamente reversíveis.
A transição social é igualmente importante para adultos e adolescentes mais velhos. As pessoas nestes grupos etários podem também tomar medidas adicionais, incluindo terapia hormonal e cirurgias de afirmação de gênero.

As pessoas transexuais também mudam freqüentemente seu nome legal e o gênero registrado em documentos de identidade, como uma carteira de motorista, certidão de nascimento ou passaporte. Essas etapas podem acontecer em qualquer estágio da transição, embora alguns estados exijam certos tipos de tratamento médico antes de permitir mudanças de marcador de gênero

Profissionais competentes de saúde mental são recursos vitais para crianças transgêneros e suas famílias. Eles ajudam pais e cuidadores entender o comportamento expansivo de gênero e a disforia de gênero. Se uma criança escolhe a transição social, eles são importantes defensores dos funcionários da escola. Crianças transexuais cujas famílias trabalham com um acompanhante médico confiável são, em média, menos ansiosas e deprimidas. Suas famílias também têm estratégias de enfrentamento mais eficazes.

Os prestadores de serviços médicos têm outro papel importante quando a criança inicia a puberdade. A puberdade pode ser extremamente angustiante para jovens transgêneros, como novas características sexuais se desenvolvendo - como pêlos faciais, seios ou menstruação. Alterações físicas e hormonais podem desencadear a disforia de gênero de um jovm ou agravá-la, às vezes a ponto de uma crise de saúde mental. Além disso, algumas dessas mudanças físicas, como o desenvolvimento das mamas, são irreversíveis ou exigem cirurgia para desfazer.

Para evitar as conseqüências de passar uma puberdade que não corresponde à identidade transgênero da criança, os profissionais de saúde podem usar medicamentos reversíveis que suspendem a a puberdade.

Estes medicamentos, conhecidos medicamente como GnRH-inibidores, mas comumente chamados de "bloqueadores da puberdade" ou simplesmente "bloqueadores" são usados ​​quando a disforia de gênero aumenta com o início da puberdade, quando a criança está ainda questionando seu gênero, ou quando uma criança que tem transição social precisa para evitar alterações puberais indesejáveis. Ao atrasar a puberdade, a criança e a família ganham tempo - normalmente vários anos - para explorar sentimentos e opções relacionados a gênero.

Durante esse tempo, a criança pode optar por parar de tomar medicação supressora da puberdade. No entanto, a maioria das crianças que experimentam disforia de gênero significativa no início adolescência (ou que tenham passado por um período de transição) provavelmente continuará a ter uma identidade transgênero ao longo da vida. A medicação supressora da puberdade pode melhorar drasticamente a vida dessas crianças. Eles podem continuar com supressão da puberdade até que tenham idade suficiente para decidir sobre os próximos passos, que podem incluir terapia hormonal para induzir a puberdade consistente com sua identidade de gênero.

O QUE SABEMOS COM CERTEZA?
Historicamente, os mal-entendidos sobre pessoas transgênero com demasiada frequência conduzem à discriminação direta - significa que poucas famílias reconheceram ou reconheceram o gênero de seus filhos - ou disforia. Como resultado, o número de crianças transexuais que fizeram contato com especialistas foi relativamente pequeno, dificultando o estudo formal do que era melhor para eles. Na ausência de pesquisa, os médicos basearam o tratamento em sua própria experiência e teorias.

Esta estratégia significa que as famílias que trabalham com diferentes especialistas podem receber recomendações.
Nos últimos anos, famílias e profissionais de saúde conseguiram obter muito mais informações precisas sobre crianças transgênero. Pesquisadores também
coletando mais e mais dados sobre quais abordagens levam aos melhores resultados. Como um resultado, o tratamento tornou-se mais padronizado e sua qualidade melhorou. Enquanto provedores especialistas ainda lidam com limitações de pesquisa e um campo em rápida mudança, suas recomendações para crianças com disforia de gênero são apoiados por uma base crescente de evidências empíricas.

Especialistas que trabalham com crianças, adolescentes e adultos transexuais geralmente concordam em pontos importantes. Primeiro, adolescentes e adultos transgêneros raramente se arrependem da transição de gênero, e o processo (incluindo mudanças sociais e/ou médicas) melhora substancialmente seu bem-estar. Em segundo lugar, algumas crianças expressam uma forte identidade transgênero desde cedo e possivelmente serão adultos transexuais que podem viver felizes e saudáveis ​​em seu gênero autêntico. Em terceiro lugar, desencorajar ou envergonhar a identidade ou expressão de gênero de uma criança prejudica a saúde e o bem-estar, e pode ter consequências para toda a vida".
Sociedade Brasileira de Pediatria:
A equipe multidisciplinar como citada acima deve ser obrigatória no acompanhamento destes pacientes.

As questões aqui levantadas apontam para a vastidão e complexidade da problemática da intersexualidade, estimulando reflexões éticas e a necessidade sempre do acompanhamento a longo prazo, enfatizando que o pediatra não deve orientar sozinho nenhuma das condutas e sempre recorrer à equipe multidisciplinar.

Até um passado recente, a abordagem médica para mudar as características referentes ao sexo atribuído ao nascimento não teve sucesso, sendo considerada antiética. A avaliação clínica inicial deve privilegiar o sujeito, acolhendo-o de forma empática e integralizada. Um acompanhamento individualizado e contínuo é indispensável nestes casos e o pediatra tem um papel fundamental de aconselhamento e encaminhamento para o acompanhamento psicológico do adolescente e seus familiares. Deve-se identificar se o indivíduo preenche os critérios diagnósticos, se apresenta interesse em realizar intervenções clínicas ou cirúrgicas para mudança de gênero no futuro, avaliar o suporte social (sobretudo para o paciente e a família), assim como os aspectos relacionados à saúde mental.

A terapia hormonal e a cirurgia, que podem vir a ser necessárias em alguns casos, só devem ser orientadas em centros de referência após um período prolongado de acompanhamento psicológico/psiquiátrico e têm indicações precisas devido aos vários problemas sociais e de comportamento enfrentados por estes pacientes. Há alguns relatos de taxas de satisfação de 87% dos pacientes MtF (indivíduos com sexo biológico masculino e identidade de gênero feminina) e 97% os pacientes FtM (indivíduos com sexo biológico feminino e identidade de gênero masculina).

A insatisfação pode acontecer, sendo de 1 a 1,5% dos pacientes MtF e menor de 1% dos FtM. Frente a casos de desconforto com o sexo biológico, os profi ssionais de saúde têm a responsabilidade de ouvir, orientar e auxiliar na tomada de decisões.19 Alguns pacientes procuram apenas a terapia hormonal. Por isso, a cirurgia de redesignação sexual é geralmente adiada até o paciente ter atingido uma transição satisfatória de papel social, após tratamento hormonal e liberação pela equipe de saúde mental após acompanhamento prolongado.

O protocolo da World Professional Association for Transgender Health (WPATH) prioriza a aceitação de gêneros variantes e a construção de um suporte social para saúde e bem-estar para reduzir o estresse desses pacientes e suas famílias.

As várias opções de tratamento da disforia de gênero são discutidas a seguir, enfatizando-se que sempre o tratamento psicológico/psiquiátrico precisa ser realizado de modo prolongado. A equipe multidisciplinar em centros de referência é indispensável para abordar a complexidade da situação:

– Tratamento psicoterápico
A psicoterapia está indicada para que a criança e o(a) adolescente estejam confortáveis com a evolução da sua sexualidade com melhora da ansiedade e para que se desenvolva um autoconceito positivo.

A psicoterapia (individual, casal, família ou grupo) deve ter o foco na identidade de gênero, preconceito, apoio social, imagem corporal, promoção da resiliência e suporte para lidar com os sintomas psíquicos associados ao quadro. Sugere-se que ela seja realizada antes e após a cirurgia, mantendo o seguimento até a vida adulta.

Um tratamento com orientação psicanalítica tem seu lugar, considerando que se trata de uma questão sobre a existência e o lugar que cada um ocupa ou não um desejo, que vai muito além de promover uma adaptação. Um pediatra que tem essa orientação ética, pautada na singularidade do caso, na construção da relação médico/paciente, pode ser de grande valor para esses pacientes, indicando a atenção psicológica mantida durante a adolescência.

Os adolescentes e suas famílias devem receber suporte na expressão da sua identidade sexual, sequência de mudanças no papel de gênero e transição social. Por exemplo, o indivíduo pode frequentar a escola com transição social parcial (usar roupas e um penteado que reflete a identidade de gênero) ou completa (utilizar também um nome e pronomes congruentes com a identidade de gênero). Outras questões incluem: o momento para informar aos outros a identidade real e a postura perante à reação alheia, modificações do corpo, pois, para alguns, a cirurgia pode ser essencial.

– Orientações sobre alterações na expressão de gênero e assistência social
• Terapia da voz e de comunicação para desenvolver habilidade de comunicação verbal e não-verbal;
• Depilação por eletrólise, a laser ou com cera;
• Utilização de faixas peitorais/coletes ou enchimentos de mamas, ocultação genital ou próteses peniana ou de mama, enchimento dos quadris e glúteos;
• Mudanças de nome e sexo nos documentos de identidade;
• Recursos, grupos ou organizações comunitárias de apoio entre pares, pessoal ou online que forneçam vias de apoio social e promoção de direitos;
• Recursos de apoio para as famílias e amigos/as, pessoal ou online

– Tratamento hormonal
Este tratamento só pode ser realizado por endocrinologista com experiência na área, em conjunto com a equipe multidisciplinar, pois são muitos os efeitos colaterais significativos e devem ser explicitados claramente aos pacientes e familiares. Idealmente estas intervenções devem ser adiadas até que de fato haja uma opinião consistente da equipe de um centro de referência para que sejam iniciadas. Não cabe ao pediatra orientar este tratamento hormonal.

Os critérios para intervenção hormonal compreendem:
(1) O(A) adolescente demonstra um padrão duradouro e intenso de não conformidade de gênero ou disforia de gênero (seja velada ou expressa);
(2) A disforia de gênero surgiu ou piorou com o início da puberdade;
(3) O(A) adolescente tem condições biopsicossociais para manter o tratamento (avaliar riscos associados, apresentados na Tabela 3;
(4) O(A) adolescente/pais ou responsáveis assinaram o consentimento médico informado do tratamento. O pediatra não deve prescrever tais medicamentos.

As intervenções reversíveis ou parcialmente reversíveis podem ser realizadas no Brasil conforme parecer do Conselho Federal de Medicina nº 8/2013.

O tratamento hormonal é dividido em duas etapas:
(1) Supressão puberal, e (2) Hormonioterapia para reafirmação da identidade de gênero.

Supressão puberal (intervenção totalmente reversível)
A supressão do desenvolvimento puberal é indicada para que o(a) adolescente possa ter tempo para explorar sua identidade sexual, reduzindo as preocupações com as alterações corporais induzidas pela puberdade, além de dar tempo aos pais para se familiarizarem e entenderem essa nova situação.

Antes de ser iniciada é importante avaliar se a não conformidade de gênero é persistente ou está se acentuando com o surgimento das características sexuais indesejadas. Também devem ser considerados outros fatores como: suporte psicológico permanente, entendimento das mudanças físicas e dos riscos da terapia e assinatura do termo de consentimento e assentimento informado pelos pais e/ou pelo adolescente.

A supressão puberal é iniciada pelo menos no estágio 2 de desenvolvimento e maturação puberal, segundo os critérios estabelecidos por Tanner, independente da idade cronológica, com o objetivo de suprimir a produção dos esteroides sexuais e consequentemente, retardar as mudanças físicas do início da puberdade (alterações da voz, aumento da massa muscular e pelos faciais no sexo masculino; e desenvolvimento mamário e menstruação no sexo feminino).

A importância em se aguardar o estadio 2 consiste na possibilidade de permitir ao adolescente que experimente a puberdade de acordo com o seu sexo natal e no fato de que, para melhores resultados funcionais no caso de cirurgias como a construção de neovagina, é ideal um ganho de comprimento prévio do falo.

Entretanto, alguns indivíduos só iniciam a supressão puberal mais tarde, nos estágios 3-4 de Tanner. Nessa fase, a terapia hormonal ainda é capaz de regredir algumas características sexuais, impedir a progressão puberal e cessar menstruações e ereções. Quando a terapia de supressão hormonal é iniciada no final da puberdade, estágio 5 de Tanner, as características sexuais já são irremediavelmente bem estabelecidas.

A supressão do desenvolvimento e maturação puberal pode ser mantida por alguns anos, até o momento em que se define a terapia de reafirmação, quando então se modifica a terapia para um regime de reposição de hormônio feminilizante ou masculinizante. A supressão puberal não leva inevitavelmente à transição social ou à alteração de identidade. A mudança de um estágio para outro deverá ocorrer após a assimilação plena dos efeitos das intervenções anteriores pelo adolescente e seus pais.

Os hormônios utilizados para reafirmação de gênero são:
- Estrógenos: usados para desenvolver características feminilizantes (ex: desenvolvimento de mamas, voz mais aguda, diminuição de pelos corporais de padrão masculino).
- Testosterona: usada para desenvolver características masculinizantes (aumento do clitóris, voz grave, aumento de massa muscular, pêlos faciais).
Os efeitos e o tempo esperado da ação do tratamento hormonal estão dispostos nas Tabelas 4 e 5.

– Tratamento cirúrgico (Intervenção irreversível):
O tratamento cirúrgico só deve ser cogitado após a maioridade e é indicado para mudar características primárias e/ou secundárias do sexo (mamas, tórax ou órgãos genitais externos e internos, características faciais, voz, contorno corporal) e está apresentado na Tabela 6, enfatizando-se uma série de complicações e apenas deverá ser realizado em centros de referência.

Nos serviços internacionais, geralmente iniciam-se cirurgias como a mastectomia a partir dos 16 anos e a transgenitalização é postergada para a maioridade. No Brasil, as cirurgias podem ser realizadas pelo Serviço Único de Saúde (SUS) somente a partir dos 21 anos de idade, nos serviços especializados e de referência.

A equipe de saúde mental deve auxiliar sempre no preparo emocional do paciente com expectativas claras e realistas, após ter vivenciado 12 (doze) meses congruentes no gênero desejado e o termo de consentimento assinado. Opções reprodutivas devem ser exploradas antes de se submeter à cirurgia genital, como o armazenamento de células reprodutivas.

A intervenção cirúrgica para reafirmação de gênero pode ser iniciada por um ou dois procedimentos, a partir da declaração de dois profissionais de saúde mental qualificados que forneçam a documentação da história pessoal e tratamento, evolução clínica, elegibilidade e compartilhamento com o cirurgião da responsabilidade ética e legal para essa decisão."
(...)

Qual é o papel do pediatra perante um caso de criança ou adolescente que sente estar no corpo errado?
O papel do pediatra é muito importante na equipe multidisciplinar, que possibilitará o melhor apoio psicossocial e orientação nas complexas decisões sobre terapêuticas ou intervenções médicas, considerando também os direitos das crianças e adolescentes, assim como o papel de suas famílias.

O pediatra deve ter tranquilidade para ouvir as questões e apoiar o paciente de modo individualizado, tendo em vista as peculiaridades de cada caso. É necessário acompanhamento por equipe experiente (pediatra, psicólogo, psiquiatra, endocrinologista, assistente social, cirurgião, educador, enfermeiro, fonoaudiólogo) e organização dos serviços de saúde para abranger todos os procedimentos necessários.

Essa equipe poderá auxiliar as famílias na decisão sobre a sequência do processo das mudanças de papéis de gênero e na ponderação dos potenciais benefícios, os efeitos colaterais graves e os desafios das escolhas particulares. Os pais devem ser incluídos no acompanhamento pela dificuldade em lidar com o diagnóstico e auxiliar na transição de gênero, garantindo que hajam amplas possibilidades para explorar sentimentos e comportamentos, por exemplo: apoio no uso de pronomes corretos, na manutenção de um ambiente seguro para a transição (na escola, no grupo de pares) e na comunicação com outras pessoas do cotidiano como também o uso de banheiro de acordo com o gênero identificado.

Considerando a disforia de gênero, revestida de inúmeros preconceitos, os quais invariavelmente afetam e interferem negativamente na vida deste indivíduo, é fundamental promover o seu acolhimento integral e de seus familiares na diversidade, pois trata-se de uma pessoa com direitos garantidos, tais como os demais cidadãos brasileiros.

Se os profissionais de saúde não tiverem vivência em casos de disforia de gênero, poderão discutir com os especialistas da área e, na indisponibilidade local, recorrer ao Programa de Telessaúde ou às sociedades científicas".

American Psychological Association:
Diretriz 8.
Psicólogos que trabalham com questões de gênero e TGNC juvenil entendem as diferentes necessidades de desenvolvimentos de crianças e adolescentes, e que nem todos os jovens persistirão em uma identidade TGNC até a idade adulta.

Fundamentação.
Muitas crianças desenvolvem estabilidade (constância através do tempo) na sua identidade de gênero entre os 3-4 anos (Kohlberg, 1966), embora a consistência de gênero (reconhecimento de que esse gênero permanece o mesmo em todas as situações) muitas vezes não ocorre até as idades de 4 a 7 (Siegal & Robinson, 1987). Crianças que demonstram não-conformidade de gênero na pré-escola e nos anos iniciais podem não seguir este trajetória (Zucker & Bradley, 1995). Pesquisa existente sugere que entre 12% e 50% das crianças diagnosticadas com a disforia de gênero podem persistir em sua identificação com um gênero diferente do sexo atribuído no nascimento até o final adolescência e idade adulta (Drummond, Bradley, Peterson-Badaali e Zucker, 2008; Steensma, McGuire, Kreukels, Beekman, & Cohen-Kettenis, 2013; Wallien & Cohen-Kettenis, 2008). No entanto, estudos categorizaram 30% a 62% dos jovens que não retornaram à clínica para intervenção médica após avaliação inicial e cuja identidade de gênero desconhecida pode ser "desister" que já não se identificam com um gênero diferente do sexo atribuído no nascimento (Steensma et al., 2013; Wallien & CohenKettenis, 2008; Zucker, 2008a). Como resultado, esta pesquisa corre um forte risco de inflação de estimativas do número de jovens que não persistem com uma identidade TGNC. Pesquisa sugere que crianças que se identifiquem de forma mais intensa com um gênero diferente do sexo atribuído ao nascer mais provavelmente persistirão nesta identificação de gênero na adolescência (Steensma et al., 2013), e que quando a disforia de gênero persiste através da infância e se intensifica na adolescência, a probabilidade de identificação TGNC a longo prazo aumenta (A. L. de Vries, Steensma, Doreleijers e CohenKettenis, 2011; Steensma et al., 2013; Wallien & CohenKettenis, 2008; Zucker, 2008b). Crianças que questionam gênero persistentemente talvez também possam ser gays ou lésbicas e haver algum tipo de dubiedade que será sanada à medida em que a criança amadureça, de modo que isso deve ser levado em consideração (Bailey & Zucker, 1995; Drescher, 2014; Wallien & Cohen-Kettenis, 2008). Há um claro apelo na literatura para que haja cautela com os questionamentos de gênero infantil (Hill, Menvielle, Sica e Johnson, 2010; Wallace & Russell, 2013), com alguns autores subdividindo suas abordagens (Byne et al., 2012; Drescher, 2014; Stein, 2012). Ao abordar intervenções psicológicas para crianças e adolescentes, o World Professional Association for Transgender Health Standards of Care identifica intervenções "destinadas a tentar mudar o gênero identidade e expressão para se tornar mais congruente com o sexo atribuído no nascimento" como procedimento obsoleto e antiético (Coleman et al., 2012, p. 175). Espera-se que pesquisas futuras ofereçam melhores orientações nesta área de atuação (Adelson & AACAP CQI, 2012; Malpas, 2011).

Existe maior consenso quanto à prática com adolescentes. Os adolescentes que apresentam preocupações de identidade de gênero trazem seu próprio conjunto de desafios únicos (Edwards-Leeper & Spack, 2012). Complicando seu quadro clínico, muitos adolescentes que questionam o gênero também apresentam preocupações psicológicas co-ocorrentes, tais como ideário suicida, comportamentos auto-injuriosos (Liu & Mustanski, 2012; Mustanski, Garofalo & Emerson, 2010), uso de drogas e álcool (Garofalo et al., 2006) e distúrbios do espectro do autismo (A. L. de Vries, Noens, CohenKettenis, van Berckelaer-Onnes, & Doreleijers, 2010; Jones et al., 2012). Além disso, os adolescentes podem se tornar intensamente focados em seus desejos imediatos, resultando em exibições externas de frustração e ressentimento quando confrontados com qualquer atraso na recepção do tratamento médico de que eles sentem que iriam se beneficiar e que eles sentem que têm direito (Angello, 2013; Edwards-Leeper & Spack, 2012). Este foco intenso em necessidades imediatas pode criar desafios ao assegurar que os adolescentes sejam cognitivamente e emocionalmente capazes de tomar decisões que alterem a própria vida ao mudar seu nome ou marcador de gênero e que se inicie a terapia hormonal, ou mesmo prosseguir com a cirurgia.

No entanto, existe um maior consenso quanto à abordagem no tratamento para adolescentes TGNC (Coleman et al., 2012). Opções de tratamento para os adolescentes estendem-se além das abordagens sociais para incluir abordagens médicas. Uma intervenção médica particular envolve o uso de medicação supressora da puberdade ou "Bloqueadores" (análogo de GnRH), que é um medicamento reversível usado para retardar a puberdade e que deve ser utilizado em adolescentes diagnosticados com disforia de gênero (Coleman et al., 2012; A. L. C. de Vries et al., 2014; Edwards-Leeper, & Spack, 2012). Por causa de sua idade, outras intervenções médicas podem estar também disponíveis para adolescentes e os psicólogos são frequentemente consultados para fornecer uma avaliação se tais procedimentos seriam aconselháveis (Coleman et al., 2012).

Aplicação.
Psicólogos que trabalham com TGNC juvenil são encorajados regularmente, reconhecendo a literatura disponível sobre os benefícios potenciais e riscos de diferentes abordagens de tratamento para crianças e para adolescentes, a oferecer aos pais e responsáveis informações claras sobre disponibilidade de abordagens de tratamento, independentemente da abordagem específica escolhida pelo próprio psicólogo. Os psicólogos são encorajados a prestar serviços psicológicos à TGNC e questionários de gênero para crianças e adolescentes que atraiam a literatura validada empiricamente quando disponível (Ehrbar & Gorton, 2010). Os psicólogos também são encorajados a continuarem cientes de que o que um jovem e/ou pai pode procurar em uma relação terapêutica pode não coincidir com a abordagem do clínico (Brill & Pepper, 2008). Nos casos em que um jovem e/ou pai identifica diferentes resultados preferenciais do tratamento que podem não ser clinicamente apropriados, o clínico trabalha com o jovem e família, opções alternativas, incluindo encaminhamento, que pode ser considerado. Os psicólogos também podem se encontrar pairando em sistemas familiares em que os jovens e seus os cuidadores estão buscando diferentes resultados de tratamento (Edwards-Leeper & Spack, 2012).

Uma vez que a não-conformidade de gênero pode ser transitória para crianças mais jovens, em particular, o papel do psicólogo será ajudar e apoiar as crianças e suas famílias através da processo de exploração e auto-identificação (Ehrensaft, 2012). Os psicólogos são orientados a não impor nenhum tipo de padrão à criança, nem que ela se adeque a estereótipos sociais, nem tampouco que estimule a criança a seguir um padrão de gênero dissonante, mas que se limite a acompanhar a criança e os pais, permitindo que essa se desenvolva em um ambiente em que cresça externando naturalmente o que realmente é, até que o gradual amadurecimento possibilite novas observações. Além disso, os psicólogos podem fornecer aos pais informações sobre possíveis trajetórias de longo prazo que crianças podem ter em consideração a sua identidade de gênero, juntamente com as intervenções médicas disponíveis para adolescentes cuja identificação TGNC porventura persistir (Edwards-Leeper & Spack, 2012; Brill & Pepper, 2008). 

Para os adolescentes que apresentam um longo histórico de não conformidade de gênero, os psicólogos podem informar aos pais que a identidade de gênero auto-afirmada do adolescente provavelmente manter-se-á estável (A. L. de Vries et al., 2011). As necessidades clínicas desses adolescentes podem ser diferentes dos que estão em fases iniciais de explorar ou questionar sua identidade de gênero. Os psicólogos são encorajados a completar uma avaliação e assegurar aos adolescentes e familiares prontidão para progredir, evitando também atrasos desnecessários para aqueles que estão prontos para avançar.

Psicólogos que trabalham com TGNC e questionamento de gênero juvenil são encorajados a se familiarizar com opções de tratamento médico para adolescentes (por exemplo, medicação pubertysuppressing, terapia hormonal) e trabalhar em colaboração com provedores médicos para fornecer atenção aos clientes. Porque o envolvimento contínuo de acompanhantes de saúde mental experientes é incentivado devido às implicações psicossociais e, muitas vezes, são também parte de requisitos do regime de tratamento médico que pode ser oferecido para adolescentes TGNC (Coleman et al., 2012; Hembree et al., 2009), os psicólogos muitas vezes desempenham um papel essencial auxiliando neste processo (Ryan, Russell, Huebner, Diaz, & Sanchez, 2010, Wallien, & Cohen-Kettenis, 2008; Zucker & Bradley, 1995, Brill & Pepper, 2008).
(...)
As abordagens gerais da terapia utilizaram empiricamente apoios de estratégias cognitivas e comportamentais para reduzir o impacto do stress psicossocial que o adolescente enfrenta, ampliando o apoio social através do envolvimento ambiental (família, escola, etc.), fazendo referências oportunas à saúde do transgênero, indicar fornecedores de cuidados e melhorar a resiliência e o ego dos jovens. Tentativas de forçar jovens de gênero e transexuais a mudar seu comportamento para se adequar às normas sociais pode traumatizar os jovens e sufocam seus desenvolvimentos em adultos saudáveis.

Os psicólogos podem defender a diversidade de gênero e estudantes transgênero nas escolas, fornecendo educação, recomendando que as escolas criem e implementem políticas e procedimentos para prevenir assédio, privilegiar os nomes e prenomes preferidos dos alunos, garantir segurança do banheiro para todos os alunos, permitir o acesso a todas as possíveis atividades segregadas aos trangêneros(...) fornecem recursos para famílias e escolas e apoiar a criação de grupos sociais e de apoio para os jovens LGBTQ nas escolas.

Recomenda-se uma intervenção médica precoce para o período peri-puberal de jovens transgêneros que têm histórico de disforia de gênero e um desejo de viver como outro gênero. Atrasando a puberdade, tratamento hormonal cruzado sexual e/ou intervenção(ões) cirúrgica(s) podem ser indicadas para tratar a disforia de gênero. Semelhante às intervenções psicológicas, esses tratamentos são fornecidos em um base para atender às necessidades da juventude”.

Em novembro de 2012, a American Psychiatric Association (APA) aprovou as revisões para o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), que passou a ser conhecido como DSM-5. O novo manual deixa de classificar a transexualidade como uma desordem ou transtorno mental, o mesmo que aconteceu com a homossexualidade em 1973. O DSM-5 também deixa de falar em transtorno de identidade de gênero, já que o termo está associado a uma patologia, e passa usar o termo disforia de gênero (Disforia de gênero refere-se ao sofrimento que pode acompanhar a incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o gênero designado de uma pessoa. Embora essa incongruência não cause desconforto em todos os indivíduos, muitos acabam sofrendo se as intervenções físicas desejadas por meio de hormônios e/ou de cirurgia não estão disponíveis. O termo atual é mais descritivo do que o termo anterior transtorno de identidade de gênero, do DSM-IV, e foca a disforia como um problema clínico, e não como inerente à própria identidade do transgênero) nos casos em que há uma incongruência marcante entre a própria experiência de gênero e sexo do nascimento, o que exige reparo e intervenção da Medicina. Estudo apresentado na revista britânica The Lancet Psychiatry, já na dianteira, endossou o parecer da APA de que a transexualidade não deve mais ser considerada uma doença ou distúrbio por nenhuma instituição de saúde . E em Em 2015, a OMS anunciou que iria retirar a transexualidade da lista de transtornos mentais. Como esperado, em sua 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças e Problemas de Saúde ocorrida em 2018, a Organização Mundial da Saúde retirou a transexualidade da lista de transtornos ou problemas mentais. Continua, porém, no CID da OMS em outra categoria denominada "condições relacionadas à saúde sexual".

A OMS explicou que o debate interno foi intenso para decidir o que fazer com a transexualidade, visto que simplesmente retirá-la da CID poderia ser danoso aos transexuais que precisam de cobertura nos Sistemas Públicos de Saúde, por exemplo.
"As revisões nas inclusões de condições de saúde sexual às vezes são feitas quando a evidência médica não apoia as suposições culturais. Por exemplo, a CID-6 publicada em 1948 classificou o então 'homossexualismo' como um transtorno mental, sob a suposição de que esse suposto desvio do então padrão refletia um transtorno de personalidade; a homossexualidade foi posteriormente removida do CDI e de outros sistemas de classificação de doenças na década de 1970.

A incongruência de gênero, da mesma forma, também foi agora removida da categoria de transtornos mentais para a categoria de saúde sexual na CID. O raciocínio é que, embora haja evidências claras de que a transexualidade não se trata de um transtorno ou problema mental - e classificá-la assim pode inclusive causar enorme estigma para as pessoas transgêneros -, ainda há necessidades significativas de cuidados na saúde dessas pessoas que podem ser melhor atendidas se a condição estiver dentro da CID".

Em 2016, a American College of Pediatricians (ACPeds) publicou declaração opondo-se a tratamentos médicos para crianças transexuais, o que foi compartilhado por religiosos no mundo todo como uma clara demonstração de que a Ciência estaria "fulminando a ideologia de gênero", no entanto, é preciso contextualizar um ponto:

A American College of Pediatricians (ACPeds)  (200 membros de diferentes áreas) é uma instituição de pediatras dissidentes da American Academy of Pediatrics [Academia Americana de Pediatria (AAP)] (66 mil pediatras), que é uma das três Associações de Pediatria mais renomadas do mundo e a mais renomada dos Estados Unidos. A ACPeds é uma Associação de pediatras cristãos que outorga "verdades absolutas" e uma "boa ciência que promove a moral", opõe-se ao casamento gay e diversos direitos homossexuais por compreender a “família pai-mãe como unidade fundamental”, opõe-se também à “ideologia de gênero”, prega abstinência sexual até o casamento, etc.

Os embates entre as duas Associações são notórios, uma vez que a AAP já processou a ACPeds por declarações que associavam homossexualidade à pedofilia “(PLGBT)”, militância contra a adoção por homossexuais, casamento gay, apologia à terapias de reversão sexual, entre outras. A AAP classificou a ACPeds como “um grupo de ódio propagadores de desinformação”.

A resposta da American Academy of Pediatrics:
Os clínicos adotam cada vez mais uma abordagem de “afirmação de gênero” para crianças que são transgênero. Esta abordagem significa focar no que a criança diz sobre sua própria identidade de gênero e expressão, e permitindo-lhes determinar em quais formas de expressão de gênero se sentem confortáveis e autênticas. A Academia Americana de Pediatria endossa o cuidado de afirmação de gênero, como descrito em sua declaração de política e relatório técnico sobre atendimento em consultório para jovens LGBTQ. Diretrizes de outras organizações profissionais importantes permitem ou endossar esta abordagem.

Apesar deste consenso, alguns grupos - incluindo uma minoria dos profissionais de saúde - continuam promovendo estratégias não-afirmativas: terapias reparativas ou transição de gênero atrasada. Terapia reparativa são tentativas de "corrigir" comportamentos expansivos de gênero, enquanto a transição atrasada proíbe a transição de gênero até que a criança atinja a adolescência ou até mais independentemente de seus sintomas de disforia de gênero.

Embora os pesquisadores tenham muito a aprender sobre crianças expansivas de gênero e transexuais, existe evidência de que tanto a terapia reparativa quanto a transição atrasada podem ter graves consequências para as crianças. Enquanto alguns grupos promovem essas estratégias de boa fé, muitos usam descrições enganosas de pesquisa ou mesmo total desinformação.

Esta seção descreve a teoria e a evidência por trás de cada abordagem. Isso explica por que os médicos abraçaram o cuidado afirmativo de gênero, e esboça o que ainda temos que aprender sobre o cuidado crianças transexuais.

Terapia Reparadora ou de Conversão: Fútil e Destrutiva
No passado, alguns psicólogos e psiquiatras acreditavam que ser transexual era um problema mental. Eles criaram tratamentos que acreditavam que "consertariam" a identidade de gênero de um adulto ou criança. Essas práticas são chamadas de terapias “reparativas” ou “conversivas”.

Embora um punhado de médicos antiéticos ainda empreguem terapias reparadoras, os profissionais de saúde mental a desacreditaram e condenaram. As principais organizações profissionais, incluindo o American College of Physicians, o American Academy of Pediatrics, o American Psychoanalytic Association, o American School Counselor Association, o American Psychological Association e o National Association of School Psychologists rejeitaram explicitamente os esforços para mudar a identidade de gênero de uma criança ou adulto. Numerosas outras, incluindo o American Medical Association e o American Psychiatric Association explicitamente denunciaram essas práticas, rejeitando terapias reparativas para orientação sexual.

Embora a transexualidade não seja uma orientação sexual, tratamentos reparadores para crianças com disforia de gênero estão intimamente ligados à estratégias para mudar a orientação sexual de uma criança. Durante o final dos anos 1970, quando esses tratamentos foram desenvolvidos, os pesquisadores acreditavam que as crianças expansivas de gênero tinham maior probabilidade de se tornarem gays, lésbicas ou adultos bissexuais - e os tratamentos tinham a intenção de evitar tanto a homossexualidade quanto a identidade trans. Estes tratamentos visam principalmente meninos “efeminados”.

Não há evidências científicas de que a terapia reparadora ajude com a disforia de gênero ou impeça que as crianças se tornem adultos trans. Ao invéz disso, especialistas e organizações profissionais acreditam que inflige danos duradouros nas crianças. Em particular, prejudica as relações familiares e faz com que as crianças sintam vergonha de quem são. O Sociólogo Karl Bryant, que, quando menino, foi submetido à terapia destinada a torná-lo menos estereotipicamente feminino, escreveu em 2007 que “o resíduo mais duradouro [do tratamento] era a vergonha de saber que aqueles que eu estava mais perto desaprovavam-me no que parecia ser uma característica muito profunda”.

Transição adiada: prolongando a disforia
Certos clínicos, juntamente com os críticos não-especialistas em defesa de direitos dos transgêneros, tomaram uma posição que eles descrevem como "espera vigilante". Eles alegam que a maioria das crianças com disforia de gênero não se tornarão adultos transgêneros e, portanto, a transição social precoce pode ser desnecessária, mesmo prejudicial.

Eles defendem a espera até a adolescência, ou mesmo a idade adulta, para permitir qualquer tipo de transição gênero. Porque a espera vigilante é uma frase geral que também poderia se aplicar à afirmação de identidade de gênero de uma criança à medida que crescem. Usamos a frase “transição atrasada” para descrever mais especificamente essa abordagem.

É verdade que a maioria das crianças expansivas de gênero, e até mesmo algumas crianças com disforia de gênero, não se tornarão adultos transgêneros. De fato, algumas crianças se sentem mais à vontade com o gênero atribuído à medida que chegam à adolescência. Infelizmente, os defensores da transição tardia apoiam suas reivindicações com interpretações enganosas das pesquisa. Mais importante, eles têm poucas respostas para crianças cujo desenvolvimento e bem-estar são perturbados pela disforia de gênero.

Vários estudos avaliaram as identidades de gênero em adultos de pacientes quanto à disforia de gênero na infância. Em todos os estudos, apenas 12 a 50 por cento das crianças transgênero nascidas do sexo feminino e 4 a 20 por cento das crianças transgênero do sexo masculino continuaram transgêneros como adolescentes ou na fase adulta. Essas informações são importantes para os especialistas e para as famílias. No entanto, os defensores da transição tardia citam esses estudos para sugerir que os médicos não podem distinguir entre os chamados “persisters” (crianças que se tornarão transgêneros adultos) e “desisters” (crianças que se sentem confortáveis ​​com o gênero originalmente atribuído ao longo do tempo).

Existem sérios problemas com esta afirmação. A primeira é que a porcentagem de crianças com a disforia de gênero é provavelmente maior do que a relatada. Em alguns casos, as suposições dos pesquisadores inflam artificialmente a proporção de desisters. Um estudo amplamente citado, usando dados de 127 jovens, contaram os participantes como desistas se não retornassem ativamente à clínica como adolescentes.

Embora o programa dos autores fosse a única clínica de gênero para crianças e adolescentes na Holanda, é possível que algumas pessoas persigam tratamento em outro lugar, continuando a ter disforia de gênero ou transição de gênero sem ajuda médica.

Além disso, as pressões familiares ou de grupo instigam alguns participantes da pesquisa a esconder sua disforia de gênero. Em um caso, uma criança de 15 anos alegou não ter disforia de gênero em follow-up, mas contatou a clínica um ano depois dizendo que ela mentiu sobre seus sentimentos porque ela estava envergonhada.

Esses casos são exemplos de como os resultados das pesquisas podem ser muito menos claro do que parecem, especialmente quando os participantes se sentem pressionados a aceitar seu sexo atribuído no nascimento.

Mais importante, clínicos competentes geralmente podem distinguir crianças transexuais de outras crianças com expansão temporária de gênero. Muitos defensores da transição tardia dizem que isso é impossível até que uma criança atinja a puberdade, mas seus próprios estudos os contradizem, identificando características precoces que predizem se a disforia de gênero persistirá. Persisters nesses estudos apresentaram mais comportamentos de gênero cruzado e disforia de gênero mais intensa durante a infância, medida em vários testes psicológicos. Entrevistados posteriormente, eles também descreveram suas experiências de infância com gênero de forma diferente. Por exemplo, os persisters lembraram que insistiram que eles eram o “outro” gênero, enquanto os desisters disseram que desejavam ser do seu gênero atribuído.

Se os especialistas podem distinguir as crianças transgênero e não-transgênero, então por que os estudos incluem tantos desisters? A resposta é que esses estudos incluem crianças que nunca foram consideradas prováveis transgêneros. Alguns foram trazidos para clínicas simplesmente por serem meninas masculinas ou meninos feminilizados, mas eles não estavam substancialmente desconfortáveis ​​com sua categoria original de gênero. Estudos exigiram que as crianças tivessem um diagnóstico psiquiátrico de disforia de gênero ou “Esperar a transição… não era uma opção se nós nos importamos com a saúde de [nosso filho].

Certos estudos exigiram que as crianças tivessem um diagnóstico psiquiátrico de disforia de gênero ou um diagnóstico mais antigo e desatualizado chamado transtorno de identidade de gênero. Esses diagnósticos são projetados para identificar crianças com preocupações clinicamente significativas relacionadas ao gênero, mas não para prever se uma criança crescerá para ser transgênero. Em suma, muitos estudos de pesquisa não avaliaram suficientemente a identidade de gênero e a expressão de gênero, confiando em categorizações psiquiátricas que combinam esses conceitos separadamente.

À luz desses fatos, é claro que muitas crianças que são expansivos em termos de gênero ou têm leve disforia de gênero não são transgêneros quando crescem - mas estas não são as crianças para quem médicos competentes recomendam a transição de gênero.

Como na maioria das áreas da Medicina e da vida, não há teste perfeito para prever o que é melhor para cada criança.
Mas os defensores da transição tardia tratam a transição de gênero desnecessária ou equivocada como o pior cenário, em vez de equilibrar esse risco com as conseqüências do atraso. Sem tratamento, a disforia de gênero pode causar depressão, ansiedade, problemas sociais, fracasso escolar, autoflagelação e até mesmo suicídio. Os defensores da transição tardia têm poucas respostas para as crianças e famílias que sofrem com esses sintomas.

Aqueles que defendem a transição atrasada dizem que permite que uma criança explore as possibilidades do gênero sem pressão para uma direção particular. Embora isso possa ser sua intenção, a abordagem da transição atrasada torna justamente isso realmente impossível.

As crianças podem ter permissão para expressar certos comportamentos expansivos de gênero, tais como preferências de jogo ou vestido, mas eles são proibidos de outras formas de auto-expressão, como adotar nomes e pronomes, que elas podem desejar ardentemente tomar. Estes constrangimentos comunicam à criança que ser transexual é desencorajado. Tragicamente, a juventude cujas famílias falham em afirmar sua orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero aumentam significativamente o risco de depressão, abuso de substâncias e tentativas de suicídio.

Embora atrasar a exploração de gênero de uma criança possa causar sérios danos, uma abordagem deliberada é sábia. Algumas crianças precisam de mais tempo para descobrir sua identidade de gênero, e algumas o fazem melhor experimentando muda mais lentamente. Para essas crianças, correr para a transição pode ser tão prejudicial quanto adiar. O problema com a “transição atrasada” é que ela limita a transição com base na idade da criança, em vez de considerar sinais importantes de prontidão, particularmente os desejos e experiências da criança. Uma abordagem afirmativa de gênero usa essa gama mais ampla de fatores, com especial atenção para evitar o estigma e a vergonha.

Abordagens Afirmativas ao Gênero: Soluções Flexíveis
As crianças expansivas em relação ao gênero são diversas. Algumas têm sérios problemas com características sexuais de seus corpos, enquanto outras não. Alguns se identificam como meninos ou meninas - de acordo com, ou em contraste para, seu sexo atribuído - enquanto outros se entendem como nenhum ou entre. Alguns são abraçados por suas famílias, colegas e escolas, enquanto outros se deparam com resistência ou abuso.

Alguns lidam com a disforia de gênero por meio de outras estratégias além da transição de gênero, enquanto outros experimentam aflição poderosa e inescapável até tomar essas medidas.

Nenhuma estratégia única contempla um grupo tão variado. É por isso que os clínicos de gênero descrevem seus objetivos de maneira ampla e em termos da experiência subjetiva de cada criança. Um grupo de médicos especialistas chama sua meta de “saúde de gênero”, definida como “a oportunidade de uma criança de viver no gênero que se sente mais real ou confortável para aquela criança [...] com liberdade de restrição, aspersão ou rejeição”.

Ao contrário das abordagens de espera vigilante, que proíbem certas formas de expressão de gênero até que a criança seja mais velha, as abordagens afirmativas de gênero seguem a direção da criança. Os profissionais de saúde mental e médica auxiliam principalmente as famílias (e, freqüentemente, a comunidade escolar de uma criança) a se sentirem confortáveis ​​com a expressão de gênero da criança. As crianças têm a certeza de que não há nada errado com sua identidade ou expressão de gênero e muitas delas se beneficiam de brincadeiras ou apoiam grupos com outras crianças expansivas em termos de gênero. Os terapeutas afirmativos de gênero ajudam as crianças a explorar seus sentimentos sobre gênero e compartilham habilidades para lidar com o bullying baseado em gênero, fortalecendo a “resiliência de gênero” da criança.

Para crianças com disforia de gênero leve, a afirmação de seus traços expansivos de gênero pela família e pelo terapeuta muitas vezes alivia sua angústia. Para esse grupo, parece que a disforia de gênero - e até mesmo um desejo moderado de mudar de gênero - pode resultar de problemas para reconciliar sua masculinidade ou feminilidade em ser menina ou menino. Os adolescentes afirmados em seus traços expansivos de gênero são mais felizes e mais saudáveis, independentemente de crescerem ou não para se identificarem como transgênero.

Outras crianças têm uma identidade transgênero insistente, consistente e persistente; elas só prosperam quando vivem totalmente em um gênero diferente daquele que corresponde ao sexo atribuído no nascimento. Ao diferenciar essas crianças das crianças expansivas de gênero descritas acima, os médicos usam duas regras gerais: enfocam as declarações de uma criança sobre seu sexo e identidade de gênero, não sua expressão de gênero (masculinidade ou feminilidade) e procuram “insistências e consistências” sobre essa identidade. Os clínicos ajudam essas crianças e suas famílias a afirmarem socialmente a identidade de gênero da criança. Se a puberdade é iminente, eles também podem recomendar medicações que atrasam a puberdade, dando à criança mais tempo para explorar seu gênero e prevenindo o tumulto que a puberdade “errada” pode causar. Os clínicos afirmam considerar cada criança individualmente - e em termos de seu estágio de desenvolvimento, não a sua idade. Eles aconselham que a transição ocorra quando a criança indica que ela está pronta, e não quando os adultos a determinam.

Com a afirmação e o apoio, muitas crianças transgênero e expansivas de gênero amadurecem em jovens adultos felizes e saudáveis. Esses jovens são extraordinariamente resilientes aos desafios que enfrentam. Pesquisa emergente relata que crianças transexuais cujas famílias afirmam sua identidade de gênero são tão psicologicamente saudáveis ​​quanto seus pares não transgêneros."

IIII/III - Orientação Sexual:
Só pincelando de forma muito resumida, quase todos os seres vivos conhecidos

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