Sociedade Brasileira de Pediatria - Disforia de Gênero

Sociedade Brasileira de Pediatria - Disforia de Gênero
http://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/19706c-GP_-_Disforia_de_Genero.pdf
O pediatra poderá ser o primeiro profissional a ser procurado para conversar sobre a sexualidade e eventualmente sobre as variações de gênero das crianças e adolescentes, e deve estar capacitado para tal. (...) As crianças entre 6 e 9 meses são capazes de diferenciar, quanto ao gênero, vozes e faces. Aos 12 meses, associam vozes masculinas e femininas a determinados objetos tidos como típicos de cada gênero. Demonstram preferências por padrões de cores e brinquedos, algo percebido até entre chimpanzés e, embora mais nítido aos 2 anos, crianças de 17 a 21 meses de vida têm habilidade de se identificar como meninos ou meninas e apresentam brincadeiras relacionadas ao gênero. A identidade de gênero tem início entre 2-3 anos de idade. Entre 6-7 anos, a criança tem consciência de que seu gênero permanecerá o mesmo. Na maioria das pessoas, existe uma conformidade entre o sexo biológico características genitais presentes ao nascimento) e a identidade de gênero (a experiência emocional, psíquica e social de uma pessoa enquanto feminina, masculina ou andrógina definida pela cultura de origem). Entretanto, em alguns indivíduos existe uma incongruência entre o sexo biológico e a identidade de gênero. O estresse, sofrimento e desconforto causados por essa discrepância é chamado de disforia de gênero.

Na década de 1950, o sexologista neozelandês John Money foi o primeiro a propor que, além do sexo biológico atribuído ao nascimento, há uma outra face da sexualidade relacionada aos processos de aprendizagem e sociabilização, que se estabelecem entre dois e quatro anos de idade. Isso influenciou a concepção de identidade de gênero, que é uma construção complexa e absolutamente singular e envolve fatores biológicos, psicológicos, interrelacionais, sociais e históricos, por meio de uma interação complexa de genes, hormônios sexuais, socialização e desenvolvimento cognitivo.

(...)

Crianças e adolescentes que apresentam discordância entre o sexo biológico e a identidade de gênero podem ser alvos de bullying, rejeição, violência física ou verbal e ostracismo social, repercutindo negativamente na qualidade de vida e no bem-estar psicológico. A família, frequentemente, é alvo de críticas e rejeição, necessitando também da atenção do pediatra.

A identidade de gênero é uma categoria da identidade social e refere-se à auto-identificação de um indivíduo como mulher ou homem ou a alguma categoria diferente do masculino ou feminino. Pessoas cujas identidades de gênero não correspondem aos sexos biológicos atribuídos ao nascimento são nomeadas como transgêneros ou transexuais. Trata-se de um fenômeno heterogêneo que pode ganhar diferentes coloridos de acordo com a realidade psíquica, social e cultural de cada um.

A 10ª Classificação Internacional de Doenças (CID-10) categoriza o transexualismo como uma entidade nosológica pertencente aos transtornos de identidade de gênero (codificada como F64, F64.2 quando se trata de crianças ou F64. quando se trata de adolescentes). Na 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a Associação Americana de Psiquiatria (APA), reconhecendo as controvérsias relacionadas à sexualidade, criou uma categoria própria denominada disforia de gênero.

De forma geral, ambos os manuais definem a condição disforia de gênero como um desconforto ou sofrimento causados pela incongruência entre o gênero atribuído ao nascimento e o gênero experimentado pelo indivíduo. No DSM-5, a identidade de gênero é reconhecida como um conceito fluido, que engloba sentimentos sobre o corpo, sobre os papéis sociais relacionados, identificação de gênero e sexualidade, abrindo espaço para identidades alternativas que não se restringem ao estereótipo binário homem-mulher.

(...)

Qual é a prevalência da disforia de gênero em crianças e adolescentes?
A prevalência de disforia de gênero não é bem conhecida devido a fatores culturais, metodológicos e, a partir de 2013, pela mudança do termo “transtorno de identidade de gênero”, do DSM-4 para “disforia de gênero”, no DSM-5.
(...)

Qual é a etiologia da disforia de gênero?
A experiência de gênero resulta de uma interação complexa entre fatores genéticos, hormonais, sociais, psíquicos, cognitivos e relacionais. Alguns estudos de neuroimagem têm demonstrado que adolescentes com disforiade gênero possuem características estruturais e funcionais semelhantes compatíveis com o sexo por eles desejado.

Diversos autores encontraram evidências, estudando gêmeos monozigóticos e genes envolvidos na gênese de esteroides sexuais e a enzima aromatase, além de questões ligadas aos receptores para andrógenos e estrogênios. Também parece existir certa correlação entre influência hormonal pré-natal e o neuro-desenvolvimento cortical. (...)

Qual é a história natural da não-conformidade de gênero?
É impossível prever quais crianças com não-conformidade de gênero irão persistir na adolescência e vida adulta. Estudos mostram que a maioria das crianças pré-púberes com não-conformidade de gênero voltarão a ficar satisfeitas com seu sexo biológico próximo à adolescência, embora, em algumas, exista uma tendência à orientação homossexual; esta informação de que a maioria das crianças e adolescentes resolverão bem e aceitarão bem o sexo biológico deve ser passada com tranquilidade e a minoria onde esta questão não se resolve deve ser acompanhada com atenção. Esse dado não significa, no entanto, que a identidade de gênero tenha uma relação direta com a orientação sexual do indivíduo. Por outro lado, quando a disforia de gênero se inicia na adolescência, existe uma grande probabilidade dela se manter na vida adulta.

Quando a disforia de gênero é suspeitada na idade pré-escolar, estudos longitudinais mostram que 85% dessas crianças voltarão a ficar satisfeitas com seu sexo biológico, embora em algumas existisse uma tendência à orientação homossexual.13 Quando a disforia de gênero surge na adolescência, existe uma grande probabilidade dela se manter na vida adulta.

É importante destacar que os estudos oferecem certa orientação, mas cada caso se apresenta como único. O pediatra deve participar junto à equipe multidisciplinar do seguimento destas crianças e adolescentes com postura atenta e cuidadosa, visando minimizar os riscos para cadasujeito, mas não fazer indicações de condutas sozinho.

(...)

Como tratar a disforia de gênero?
A equipe multidisciplinar como citada acima deve ser obrigatória no acompanhamento destes pacientes.

As questões aqui levantadas apontam para a vastidão e complexidade da problemática da intersexualidade, estimulando reflexões éticas e a necessidade sempre do acompanhamento a longo prazo, enfatizando que o pediatra não deve orientar sozinho nenhuma das condutas e sempre recorrer à equipe multidisciplinar.

Até um passado recente, a abordagem médica para mudar as características referentes ao sexo atribuído ao nascimento não teve sucesso, sendo considerada antiética. A avaliação clínica inicial deve privilegiar o sujeito, acolhendo-o de forma empática e integralizada. Um acompanhamento individualizado e contínuo é indispensável nestes casos e o pediatra tem um papel fundamental de aconselhamento e encaminhamento para o acompanhamento psicológico do adolescente e seus familiares. Deve-se identificar se o indivíduo preenche os critérios diagnósticos, se apresenta interesse em realizar intervenções clínicas ou cirúrgicas para mudança de gênero no futuro, avaliar o suporte social (sobretudo para o paciente e a família), assim como os aspectos relacionados à saúde mental.

A terapia hormonal e a cirurgia, que podem vir a ser necessárias em alguns casos, só devem ser orientadas em centros de referência após um período prolongado de acompanhamento psicológico/psiquiátrico e têm indicações precisas devido aos vários problemas sociais e de comportamento enfrentados por estes pacientes. Há alguns relatos de taxas de satisfação de 87% dos pacientes MtF (indivíduos com sexo biológico masculino e identidade de gênero feminina) e 97% os pacientes FtM (indivíduos com sexo biológico feminino e identidade de gênero masculina).

A insatisfação pode acontecer, sendo de 1 a 1,5% dos pacientes MtF e menor de 1% dos FtM. Frente a casos de desconforto com o sexo biológico, os profissionais de saúde têm a responsabilidade de ouvir, orientar e auxiliar na tomada de decisões.19 Alguns pacientes procuram apenas a terapia hormonal. Por isso, a cirurgia de redesignação sexual é geralmente adiada até o paciente ter atingido uma transição satisfatória de papel social, após tratamento hormonal e liberação pela equipe de saúde mental após acompanhamento prolongado.30,33

O protocolo da World Professional Association for Transgender Health (WPATH) prioriza a aceitação de gêneros variantes e a construção de um suporte social para saúde e bem-estar para reduzir o estresse desses pacientes e suas famílias.

As várias opções de tratamento da disforia de gênero são discutidas a seguir, enfatizando-se que sempre o tratamento psicológico/psiquiátrico precisa ser realizado de modo prolongado. A equipe multidisciplinar em centros de referência é indispensável para abordar a complexidade da situação:

– Tratamento psicoterápico
A psicoterapia está indicada para que a criança e o(a) adolescente estejam confortáveis com a evolução da sua sexualidade com melhora da ansiedade e para que se desenvolva um autoconceito positivo.

A psicoterapia (individual, casal, família ou grupo) deve ter o foco na identidade de gênero, preconceito, apoio social, imagem corporal, promoção da resiliência e suporte para lidar com os sintomas psíquicos associados ao quadro. Sugere-se que ela seja realizada antes e após a cirurgia, mantendo o seguimento até a vida adulta.

Um tratamento com orientação psicanalítica tem seu lugar, considerando que se trata de uma questão sobre a existência e o lugar que cada um ocupa ou não um desejo, que vai muito além de promover uma adaptação. Um pediatra que tem essa orientação ética, pautada na singularidade do caso, na construção da relação médico/paciente,
pode ser de grande valor para esses pacientes, indicando a atenção psicológica mantida durante a adolescência.

Os adolescentes e suas famílias devem receber suporte na expressão da sua identidade sexual, sequência de mudanças no papel de gênero e transição social. Por exemplo, o indivíduo pode frequentar a escola com transição social parcial (usar roupas e um penteado que reflete a identidade de gênero) ou completa (utilizar também um nome e pronomes congruentes com a identidade de gênero). Outras questões incluem: o momento para informar aos outros a identidade real e a postura perante à reação alheia, modificações do corpo, pois, para alguns, a cirurgia pode ser essencial.

– Orientações sobre alterações na expressão de gênero e assistência social
• Terapia da voz e de comunicação para desenvolver habilidade de comunicação verbal e não-verbal;

• Depilação por eletrólise, a laser ou com cera;

• Utilização de faixas peitorais/coletes ou enchimentos de mamas, ocultação genital ou próteses peniana ou de mama, enchimento dos quadris e glúteos;

• Mudanças de nome e sexo nos documentos de identidade;

• Recursos, grupos ou organizações comunitárias de apoio entre pares, pessoal ou online que forneçam vias de apoio social e promoção de direitos;

• Recursos de apoio para as famílias e amigos/as, pessoal ou online

– Tratamento hormonal
Este tratamento só pode ser realizado por endocrinologista com experiência na área, em conjunto com a equipe multidisciplinar, pois são muitos os efeitos colaterais significativos e devem ser explicitados claramente aos pacientes e familiares. Idealmente estas intervenções devem ser adiadas até que de fato haja uma opinião consistente da equipe de um centro de referência para que sejam iniciadas. Não cabe ao pediatra orientar este tratamento hormonal.

Os critérios para intervenção hormonal compreendem:
(1) O(A) adolescente demonstra um padrão duradouro e intenso de não conformidade de gênero ou disforia de gênero (seja velada ou expressa);

(2) A disforia de gênero surgiu ou piorou com o início da puberdade;

(3) O(A) adolescente tem condições biopsicossociais para manter o tratamento (avaliar riscos associados, apresentados na Tabela 3);

(4) O(A) adolescente/pais ou responsáveis assinaram o consentimento médico informado do tratamento. O pediatra não deve prescrever tais medicamentos.

As intervenções reversíveis ou parcialmente reversíveis podem ser realizadas no Brasil conforme parecer do Conselho Federal de Medicina nº 8/2013.

O tratamento hormonal é dividido em duas etapas:
(1) Supressão puberal, e (2) Hormonioterapia para reafirmação da identidade de gênero.

– Supressão puberal (intervenção totalmente reversível)
A supressão do desenvolvimento puberal é indicada para que o(a) adolescente possa ter tempo para explorar sua identidade sexual, reduzindo as preocupações com as alterações corporais induzidas pela puberdade, além de dar tempo aos pais para se familiarizarem e entenderem essa nova situação.

Antes de ser iniciada é importante avaliar se a não conformidade de gênero é persistente ou está se acentuando com o surgimento das características sexuais indesejadas. Também devem ser considerados outros fatores como: suporte psicológico permanente, entendimento das mudanças físicas e dos riscos da terapia e assinatura do termo de consentimento e assentimento informado pelos pais e/ou pelo adolescente.

A supressão puberal é iniciada pelo menos no estágio 2 de desenvolvimento e maturação puberal, segundo os critérios estabelecidos por Tanner, independente da idade cronológica, com o objetivo de suprimir a produção dos esteroides sexuais e consequentemente, retardar as mudanças físicas do início da puberdade (alterações
da voz, aumento da massa muscular e pelos faciais no sexo masculino; e desenvolvimento mamário e menstruação no sexo feminino).

A importância em se aguardar o estadio 2 consiste na possibilidade de permitir ao adolescente que experimente a puberdade de acordo com o seu sexo natal e no fato de que, para melhores resultados funcionais no caso de cirurgias como a construção de neovagina, é ideal um ganho de comprimento prévio do falo.

Entretanto, alguns indivíduos só iniciam a supressão puberal mais tarde, nos estágios 3-4 de Tanner. Nessa fase, a terapia hormonal ainda é capaz de regredir algumas características sexuais, impedir a progressão puberal e cessar menstruações e ereções. Quando a terapia de supressão hormonal é iniciada no final da puberdade, estágio 5 de Tanner, as características sexuais já são irremediavelmente bem estabelecidas.

A supressão do desenvolvimento e maturação puberal pode ser mantida por alguns anos, até o momento em que se define a terapia de reafirmação, quando então se modifica a terapia para um regime de reposição de hormônio feminilizante ou masculinizante. A supressão puberal não leva inevitavelmente à transição social ou à
alteração de identidade. A mudança de um estágio para outro deverá ocorrer após a assimilação plena dos efeitos das intervenções anteriores pelo adolescente e seus pais.

Os medicamentos usados para supressão puberal são:
– Agonistas do hormônio liberador de gonadotrofina (aGnRH) são os medicamentos de escolha.
Agem diminuindo a secreção hipofi sária do hormônio luteinizante (LH) e folículo-estimulante (FSH), reduzindo a secreção de esteroides sexuais pelos testículos (testosterona) e pelos ovários (estrógenos). Essa supressão, com duração média de 2 anos, é totalmente reversível com retorno do desenvolvimento puberal após a suspensão do agonista do GnRH.
Apesar de reversível, o uso de análogos de GnRH pode trazer prejuízos na manutenção da fertilidade pela dificuldade de produção de óvulos.

– Medroxiprogesterona: Tratamento alternativo, indicado quando da indisponibilidade do aGnRH. A medroxiprogesterona atua reduzindo a produção de gonadotrofinas e inibindo a secreção de esteroides sexuais nas gônadas, em indivíduos do sexo masculino ou feminino.

– Acetato de ciproterona, espironolactona e finasterida: Antiandrogênicos indicados para diminuir os efeitos androgênicos em indivíduos do sexo masculino que desejam se afirmar como do sexo feminino.

Hormonioterapia para reafirmação do gênero (intervenções parcialmente reversíveis)
Essas intervenções incluem a terapia hormonal para masculinizar ou feminilizar o corpo (cross-sex hormonal therapy) de acordo com a identidade de gênero escolhida pelo individuo.

Adolescentes elegíveis para iniciar a terapia hormonal devem ter o consentimento dos pais, sincronizada com a equipe. Algumas mudanças induzidas por hormônios necessitam de cirurgia reconstrutiva para reverter o efeito (ginecomastia causada por estrógenos), enquanto outras são irreversíveis (voz grave causada pela testosterona).

Antes de prescrever esses hormônios é fundamental avaliar os riscos e complicações a eles associados. Para o adolescente genotipicamente masculino (mulher-trans) que irá repor estrógeno, deve-se avaliar e monitorar:

risco elevado de trombose venosa profunda, hiperprolactinemia, disfunção hepática grave, hipertensão arterial, diminuição da libido e tumores estrógeno-sensíveis. 
Para o adolescente genotipicamente feminino (homem-trans) que irá repor testosterona, deve-se avaliar e monitorar: dislipdemia, policitemia, aumento de enzimas hepáticas, acne e alopecia androgenética.

Os hormônios utilizados para reafirmação de gênero são:
- Estrógenos: usados para desenvolver características feminilizantes (ex: desenvolvimento de mamas, voz mais aguda, diminuição de pelos corporais de padrão masculino).

- Testosterona: usada para desenvolver características masculinizantes (aumento do clitóris, voz grave, aumento de massa muscular, pêlos faciais).

Os efeitos e o tempo esperado da ação do tratamento hormonal estão dispostos nas Tabelas 4 e 5.

– Tratamento cirúrgico (Intervenção irreversível):
O tratamento cirúrgico só deve ser cogitado após a maioridade e é indicado para mudar características primárias e/ou secundárias do sexo (mamas, tórax ou órgãos genitais externos e internos, características faciais, voz, contorno corporal) e está apresentado na Tabela 6, enfatizando-se uma série de complicações e
apenas deverá ser realizado em centros de referência.

Nos serviços internacionais, geralmente iniciam-se cirurgias como a mastectomia a partir dos 16 anos e a transgenitalização é postergada para a maioridade. No Brasil, as cirurgias podem ser realizadas pelo Serviço Único de Saúde (SUS) somente a partir dos 21 anos de idade, nos serviços especializados e de referência.

A equipe de saúde mental deve auxiliar sempre no preparo emocional do paciente com expectativas claras e realistas, após ter vivenciado 12 (doze) meses congruentes no gênero desejado e o termo de consentimento assinado. Opções reprodutivas devem ser exploradas antes de se submeter à cirurgia genital, como o armazenamento de células reprodutivas.

A intervenção cirúrgica para reafirmação de gênero pode ser iniciada por um ou dois procedimentos, a partir da declaração de dois profissionais de saúde mental qualificados que forneçam a documentação da história pessoal e tratamento, evolução clínica, elegibilidade e compartilhamento com o cirurgião da responsabilidade ética e legal para essa decisão.

Como é no Brasil o acompanhamento desses casos? Existem serviços Especializados no Brasil?
A regulamentação do Conselho Federal de Medicina para a população adulta com disforia de gênero (ou incongruência de gênero) iniciou em 1997.

A regulamentação do Conselho Federal de Medicina para a população adulta com disforia de gênero (ou incongruência de gênero) iniciou em 1997.

Instituído pelas Portarias nº 1.707 e nº 457 de agosto de 2008 e ampliado pela Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, o Processo Transexualizador realizado pelo SUS garante o atendimento integral de saúde a pessoas trans, incluindo acolhimento e acesso com respeito aos serviços do SUS, desde o uso do nome social,
passando pelo acesso à hormonioterapia, até a cirurgia de adequação do corpo biológico à identidade de gênero e social, como cirurgias reafirmação sexual (mudança de sexo); de mastectomia (retirada de mama); plástica mamária reconstrutiva (incluindo próteses de silicone) e; cirurgia de tireoplastia (troca de timbre de voz).

Além disso, no campo ambulatorial, inclui-se terapia hormonal e acompanhamento dos usuários em consultas e no pré e pós-operatório.

Entre 2008 e 2016, ao todo, foram realizados 349 procedimentos hospitalares e 13.863 procedimentos ambulatoriais relacionados ao processo transexualizador.

Em 2009, o Ministério da Saúde garantiu que o nome social de travestis e transexuais fosse garantido na Carta de Usuários do SUS, reconhecendo a legitimidade da identidade desses grupos e promovendo maior acesso à rede pública. Desde 2015, a ficha de notificação de casos de violência, preenchidas em unidades de saúde, consta a orientação sexual e a identidade de gênero.

Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos. Esses procedimentos incluem acompanhamento multiprofissional e hormonioterapia. Para procedimentos cirúrgicos, a idade mínima é de 21 anos. Após a cirurgia, deve ser realizado um ano de acompanhamento pós-cirúrgico.

O SUS conta com cinco serviços habilitados pelo Ministério da Saúde no processo transexualizador que realizam atendimento ambulatorial e hospitalar:
1. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás/ Goiânia (GO);
2. Universidade Estadual do Rio de Janeiro-Hospital Universitário Pedro Ernesto/ Rio de Janeiro (RJ);
3. Hospital de Clínicas de Porto Alegre - Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ PortoAlegre (RS);
4. Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina FMUSP/Fundação Faculdade de Medicina MECMPAS – São Paulo (SP);
5. Hospital das Clínicas/Universidade Federal de Pernambuco – Recife (PE).

O SUS também conta com quatro serviços habilitados pelo Ministério da Saúde no processo transexualizador que realizam atendimento ambulatorial:
1. Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE) – Rio de Janeiro/RJ;
2. Ambulatório do Hospital das Clínicas de Uberlândia – Uberlândia/MG;
3. Centro de Referência e Treinamento (CRT) DST/AIDS – São Paulo/SP;
4. Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais (CPATT) do Centro Regional de Especialidades (CRE) Metropolitano – Curitiba/PR.

Existem na rede de saúde pública serviços ambulatoriais, criados por iniciativa estadual, destinados ao atendimento de travestis e transexuais no Processo Transexualizador:

1. Ambulatório AMTIGOS do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo – São Paulo (SP);
2. Ambulatório para travestis e transexuais do Hospital Clementino Fraga – João Pessoa (PB);
3. Ambulatório Transexualizador da Unidade de Referência Especializada em Doenças Infecto-Parasitárias e Especiais (UREDIPE) – Belém (PA);
4. Ambulatório de Saúde Integral Trans do Hospital Universitário da Federal de Sergipe Campus Lagarto – Lagarto (SE)

Ainda não há posicionamento específico e objetivo do Conselho Federal de Medicina em relação ao acompanhamento de crianças e adolescentes com incongruência de gênero, além do Parecer nº 8/2013.

No Brasil, não existe uma legislação que regulamenta a retificação do prenome, sexo e imagem nos documentos pessoais. Dessa forma, os indivíduos precisam recorrer à justiça, ficando à mercê da burocracia, interpretações e exigências de cada juiz. A solicitação de laudos psiquiátricos e psicológicos é frequente. Algumas vezes, é exigido um novo laudo produzido por perito designado pela Justiça com objetivo de confirmar o diagnóstico.

Embora não haja qualquer determinação de que o sujeito deva estar engajado no processo transexualizador, existe certa tradição no judiciário de conceder parecer favorável especialmente para aqueles que passaram pelo processo cirúrgico. Esse fato desconsidera certa parcela dos sujeitos com disforia de gênero que opta por não se submeter às intervenções médicas.

Do diagnóstico de disforia de gênero à atenção integral: uma reflexão sobre os serviços e profissionais de saúde.
É preciso levar em consideração que a disforia de gênero não é um ato de vontade pessoal e sim, uma condição que ninguém escolhe ter.
Pode-se dizer que, por causas ainda não bem definidas, o indivíduo tem a convicção de pertencer ao sexo oposto e vive em desarmonia entre quem é, quem acredita ser e a sua aparência externa. O grau de incongruência entre a identidade de gênero e o sexo biológico deve ser avaliado criteriosamente de forma a escalonar os objetivos que, frequentemente, ultrapassam aquilo que uma transformação médico-cirúrgica possa oferecer.

As reações negativas dos profissionais em geral são comuns, fazendo com que muitas vezes, esses indivíduos não busquem os serviços de saúde. Além disso, os altos custos de alguns dos procedimentos e a pequena oferta de serviços especializados funcionam como barreiras importantes na busca pela assistência. A busca por intervenções não regulamentadas como, por exemplo, a injeção de silicones realizadas por pessoas não qualificadas pode trazer danos irreparáveis para a saúde e são contra-indicadas.

O diagnóstico é necessário para justificar qualquer intervenção médica e, nesses casos específi cos, não devemos esquecer o alto índice de comorbidades psiquiátricas na população adolescente e adulta. Por isso a necessidade do diagnóstico precoce, não como fator patologizante, mas como identificação e facilitação da vida de crianças e adolescentes.

É preciso considerar que profissionais de saúde devem seguir preceitos éticos, tratando todos os pacientes com dignidade, humanização e sem distinção de raça, cor e sexualidade. Crianças, adolescentes e adultos com disforia de gênero devem sempre ser acolhidos e tratados nos serviços de saúde, seguindo os preceitos da universalidade, integralidade e equidade da atenção, princípios resguardados pelo SUS. O grande desafio para uma assistência de qualidade a estes pacientes é o reconhecimento do sofrimento psíquico e a importância de tratar desigualmente os desiguais, como forma de justiça social.

A equipe interdisciplinar deve promover uma construção do caso, evitando a fragmentação das intervenções, mantendo sempre o lugar central reservado ao paciente que é verdadeiramente quem conduz a equipe por um percurso singular, contrário à rigidez dos protocolos que são elaborados para todos.

Qual é o papel do pediatra perante um caso de criança ou adolescente que sente estar no corpo errado?
O papel do pediatra é muito importante na equipe multidisciplinar, que possibilitará o melhor apoio psicossocial e orientação nas complexas decisões sobre terapêuticas ou intervenções médicas, considerando também os direitos das crianças e adolescentes, assim como o papel de suas famílias.

O pediatra deve ter tranquilidade para ouvir as questões e apoiar o paciente de modo individualizado, tendo em vista as peculiaridades de cada caso. É necessário acompanhamento por equipe experiente (pediatra, psicólogo, psiquiatra, endocrinologista, assistente social, cirurgião, educador, enfermeiro, fonoaudiólogo) e organização dos serviços de saúde para abranger todos os procedimentos necessários.

Essa equipe poderá auxiliar as famílias na decisão sobre a sequência do processo das mudanças de papéis de gênero e na ponderação dos potenciais benefícios, os efeitos colaterais graves e os desafios das escolhas particulares. Os pais devem ser incluídos no acompanhamento pela dificuldade em lidar com o diagnóstico e auxiliar na transição de gênero, garantindo que hajam amplas possibilidades para explorar sentimentos e comportamentos, por exemplo: apoio no uso de pronomes corretos, na manutenção de um ambiente seguro para a transição (na escola, no grupo de pares) e na comunicação com outras pessoas do cotidiano como também o uso de banheiro de acordo com o gênero identificado.

Considerando a disforia de gênero, revestida de inúmeros preconceitos, os quais invariavelmente afetam e interferem negativamente na vida deste indivíduo, é fundamental promover o seu acolhimento integral e de seus familiares na diversidade, pois trata-se de uma pessoa com direitos garantidos, tais como os demais cidadãos brasileiros.

Se os profissionais de saúde não tiverem vivência em casos de disforia de gênero, poderão discutir com os especialistas da área e, na indisponibilidade local, recorrer ao Programa de Telessaúde ou às sociedades científicas.

Sugere-se ainda a leitura complementar além da bibliografia anexa, do PROCESSO-CONSULTA CFM nº 32/12 – PARECER CFM nº 8/13 e o documento DECRETO N 8.727, DE 28 DE ABRIL DE 2016.

Ressalta-se a importância do pediatra no acolhimento da criança, do(a) adolescente e a família. Crianças e adolescentes que apresentam questões relacionadas ao gênero devem ter o acompanhamento de saúde, como seus pares da população geral. Acompanhamento e não apenas consulta, em um processo longitudinal de saúde integral, além das questões inerentes à sexualidade, aspectos emocionais, familiares e sociais. É necessário tempo para a construção da relação médico-paciente. 
Nesse processo, criança e adolescente devem ser ouvidos também sem os familiares, preservando o sigilo e a confidencialidade. A família deve ser acolhida, pois muitas vezes a criança e o/a adolescente apresentam-se como verdadeiros representantes sintomas de questões familiares.

É importante preservar a dimensão da singularidade do caso, sem tentar apagar a subjetividade com classificações e protocolos.
http://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/em-entrevista-a-presidente-da-sbp-esclarece-questoes-relacionada-ao-diagnostico-e-ao-tratamento-da-disforia-de-genero/

Nenhum comentário:

Postar um comentário